Brasil: inferno, paraíso ou purgatório?

Ultimamente, escutamos com grande frequência pessoas afirmando que querem sair do Brasil. Mudar, morar em outro lugar qualquer, esquecer as dificuldades de seu país de origem. Tem sido comum artistas e cantores brasileiros fazerem esse tipo de declaração. Jogadores de futebol, quando estão no auge das carreiras, preferem jogar em times do exterior. Estudantes sonham em exercer sua profissão bem longe daqui. Conheço muitas pessoas que se mudaram e se adaptaram bem a outros países, e também muitas outras que voltaram na primeira oportunidade. Na verdade, todos os países têm seus problemas, precisamos decidir quais nos incomodam mais.

Esse tipo de comportamento não é novo. E fica mais evidente em tempos de crises econômicas. Mas, podemos ir ainda mais longe. Se olharmos para o passado, percebemos que o Brasil foi forjado como um lugar de “passagem”.  Os colonos vinham para cá para enriquecer e voltar à Europa. Aqui era o lugar onde os pecados eram perdoados – pois, seriam deixados para trás. Já dizia João Antônio Andreoni (André João Antonil), em 1711:

“O Brasil é inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas”, (Cultura e Opulência do Brasil).

 

Com esta frase Andreoni definiu, de maneira simples e direta, a situação da população na sociedade colonial. É fácil entender porque a Colônia era o inferno dos negros escravos que, sem alternativas ou esperanças de retornar ao seu local de origem, eram submetidos às condições precárias de vida. A alforria ou a fuga não eliminavam a miséria e a ausência de prestígio social que lhe eram impostas.

Em oposição ao Inferno dos negros, a Colônia era ao mesmo tempo o Paraíso dos mulatos. O nosso jesuíta parecia não saber como encaixar os mestiços dentro da estrutura idealizada de sociedade colonial, por isso eles eram tão desqualificados. Estes representariam, neste sentido, uma ruptura, um meio-termo entre o branco e o negro, conjugando as qualidades e os defeitos dos dois. O mulato seria, então, um elemento perigoso:

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“E, contudo, eles e elas da mesma cor, ordinariamente levam no Brasil, a melhor sorte; porque, com aquela parte de sangue de brancos que têm nas veias e, talvez, dos seus mesmos senhores, os enfeitiçam de tal maneira, que alguns tudo lhes sofrem, tudo lhes perdoam; e parece que se não atrevem a repreendê-los: antes todos os mimos são seus.”

A referência ao aspecto sexual é clara:

“Forrar mulatas desinquietas é perdição manifesta, porque o dinheiro que dão para se livrarem, raras vezes sai de outras minas que dos mesmos corpos, com repetidos pecados; e, depois de forras, continuam a ser ruína de muitos.”

O mulato teria a inteligência e a esperteza do branco, aliada a uma conduta moral própria do negro. Além do que, a própria existência do mulato era a prova da mistura das raças e de um comportamento não aprovado pela Igreja. Tudo isto, fazia com que não houvesse lugar para eles na sociedade idealizada por Andreoni. Laura de Mello e Souza afirma que os mulatos viviam no Paraíso por terem se livrado do cativeiro, “negando o trabalho sistemático, inventando na mestiçagem e na especificidade do seu viver uma nova condição.” Ou seja, o mestiço representava, nessa perspectiva, tudo que era ruim, negativo. Quem nunca ouviu que “quem anda no caminho errado leva sempre a melhor no Brasil”?

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Para o branco, a Colônia não era nem Céu, nem Inferno, mas, um lugar para purgar os pecados, vislumbrando a possibilidade do Paraíso. A primeira comparação a ser feita é entre o degredo e o purgatório: o português era mandado para a Colônia para pagar por algum crime. Era uma pena a ser cumprida por certo período, com a possibilidade do retorno à Metrópole.

A vida na Colônia, por outro lado, era encarada como um martírio. Até por aqueles que não vinham obrigados a cumprir penas. Emanuel Araújo lembra que a Colônia era vista como um lugar provisório, onde se poderia fazer fortuna de maneira fácil e retornar a Portugal numa situação mais confortável.  O próprio governador Tomé de Souza, em 1551, demonstrava não suportar mais a vida no Brasil e suplicava ao rei:

(…) “por amor de Deus que mande ir para uma mulher velha que tenho e uma filha moça.”

O Marquês do Lavradio mostrava o mesmo desgosto pelas terras da Colônia nas suas cartas, escritas em 1768 e 1769. Nada lhe agrada – o clima lhe causa “refluxos”, a população tem uma aparência ruim e um comportamento pouco recomendável.

“As novas da terra são sensaboríssimas reduzem-se a farinha de pau, tabaco português, e o que podia ser mais agradável era o açúcar até isso cá é sem sabor; estes são os objetos sobre que rolam a maior parte das conversações, e também o [s] da maior parte do meu trabalho, e, como suponho que cousa nenhuma destas te interessam parece-me escusado o fazer-te deste negócio uma grande narração.”

Luís dos Santos Vilhena também não tinha uma opinião favorável à Colônia: “(…) a morada da pobreza, o berço da preguiça e o teatro dos vícios.” E sobre as causas da pobreza da população:

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Todo o mais povo, à exceção de alguns comerciantes e alguns lavradores aparatosos, como os senhores de engenho, é uma congregação de pobres; pois além de serem muito poucas as artes mecânicas e fábricas em que possam empregar-se, nelas mesmas não o fazem, pelo ócio que professam e conseqüência que daqui pode tirar-se é que infalivelmente são pobríssimas.”

       Miséria, preguiça, violência, epidemias, sujeira, clima excessivamente quente, escassez de produtos, além de uma população de má aparência, moral duvidosa e contaminada pela miscigenação com os negros e os índios. Na visão preconceituosa de muitos europeus, a Colônia era assim: um lugar repleto de provações, onde a sobrevivência era difícil e a existência árdua.

O branco, apesar das dificuldades, tinha em mente a esperança de mudar a sua condição. O retorno à Metrópole era a visão do Paraíso que animava muitos colonos – principalmente quando se imaginava este retorno adornado por uma situação financeira privilegiada, adquirida com as possibilidades oferecidas pelo Novo Mundo.

Hoje, muita gente ainda parece encarar o Brasil como um purgatório, um lugar para as “pessoas de bem” sofrerem com os malfeitos dos outros. O paraíso está do lado de fora, em outro lugar. O problema é que quem está de passagem nunca é responsável por nada. E tudo é válido, o importante é se preparar para mudar de vida. Talvez seja uma forma de pensar que herdamos daqueles tempos passados. Fica a pergunta:

Brasil: paraíso, inferno ou purgatório?

-Texto de Márcia Pinna Raspanti.

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“Adão e Eva no Paraíso”, de Lucas Cranach.

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“O Inferno”, Irmãos Limbourg.

7 Comentários

  1. Luciana Onety
  2. Marcos Romão
    • Márcia
  3. manoel gonçalves neves
  4. Vaneza Narciso

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