Brasil Império: ciência, religião e espiritismo

         Pedro II era um homem do século XIX. E como todos os homens dessa época, sabedor dos inúmeros avanços tecnológicos em andamento (eletricidade, telégrafo, etc). Fortemente influenciado pela cultura francesa, teria todos os elementos para acompanhar o interesse em curso no Hexágono, pelas experiências e por publicações a respeito do Magnetismo. Jornais, Anais, livros e intelectuais como Joseph Philippe François Deleuze ou o barão Dupotet, tinham milhares de adeptos. Até a Sociedade Real de Ciências, presidida pelo duque de Angouleme, convidava seus associados a tratar do assunto. A Academia de medicina, animada pelo amigo pessoal de D. Pedro II, o Dr. Charcot, reconhecia o sonambulismo como fenômeno capaz de desenvolver a previsão e a clarividência. Acreditava-se, então, que o magnetismo  tinha um papel fundamental em tudo que fosse observável, que nenhuma lei da Física podia explicar.

      O magnetismo não apaixonava apenas médicos, mas também grandes escritores e figuras da sociedade. A famosa escritora George Sand – que D. Pedro II irá visitar quando de passagem pela Europa – assistia a sessões de magnetismo. O duc de Montepensier, tio do Conde D´Eu, marido da Princesa Isabel recebia, em casa,  o magnetista e vidente Aléxis Didier. Alexandre Dumas, em carta ao Journal de Débats, de 17/10/1847, confirmava as previsões de um magnetista chamado Robert-Houdin, dizendo: “Se existe no mundo uma ciência  que torna a alma visível, ela é, sem contradições, o magnetismo. Alguns meses antes de sua morte em 1849, Frederíc Chopin, amigo da Condessa de Barral, a grande paixão do Imperador, se perguntava: “- Como não acreditar no magnetismo?”.

       A figura mais importante, nesse jogo de influências, seria Victor Hugo, cuja obra D. Pedro II admirava e com quem trocava correspondência. Exilado na ilha de Guernesey, perseguido por Napoleão III,  ele descobre o poder das mesas divinatórias e torna-se um adepto das mesmas. Victor Hugo dizia receber espectros cotidianamente. A partir de 1850, ele mergulha em estudos sobre a metempsicose. Via nas árvores e nos pássaros vestígios de velhas almas. E dizia “conversar com todas as vozes da metempsicose”. Nenhum dos seus contemporâneos se escandalizava. É muito provável, que D. Pedro II, tampouco.  E que nos 35.000 volumes de sua biblioteca, houvesse material sobre o assunto.

        Vários trabalhos de historiadores renomados (penso aqui em João José Reis e sua pesquisa recente sobre um “pai de santo” na Bahia oitocentista) revelam que a necessidade de acreditar não tem regras. É possível ser simultaneamente, católico e umbandista; Budista e espírita. Enfim, não há limites para as indagações fenomenológicas dos indivíduos. A fidelidade à Igreja Católica estava na base da monarquia portuguesa, há séculos. A aliança com o cristianismo foi à ponta de lança para a aventura ultramarina portuguesa. D. Pedro II não poderia escapar de compromissos de Estado. Mas como homem de seu tempo, tinha necessidade de contrapor a Ciência ao Oculto, a Razão ao Sobrenatural. E me parece, foi o que fez.

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        Emerson Giumbelli teve pioneirismo em abordar o tema. E lembra bem, que o Espiritismo oitocentista (diferente do atual, pois tudo muda) tinha de fato essa marca: a tentativa  de Ciência e Religião se darem as mãos. Houve mesmo um padre português, o Abade Faria, que em Paris, na segunda metade do século XIX, se tornou famoso por exibições no campo da arte divinatória e da conversa com os mortos.

       Penso, contudo, que há outra brecha para pensarmos a relação entre espiritismo e cultura. É a questão da morte. Nunca, na história cultural, ela esteve tão presente. Criam-se cemitérios – cidades dos mortos com ruas e avenidas, túmulos de ricos e de pobres . Surgem os especialistas em fabricar túmulos e disseminar novas práticas funerárias. Tem início o combate às epidemias e aos altos índices de mortalidade. O higienismo se torna uma obsessão. Estuda-se o gás carbônico e o mefitismo ou seja, as exalações fétidas dos corpos em decomposição. O encontro com as religiões do Oriente, graças às inúmeras sociedades científicas de exploração das colônias europeias na Ásia, o estudo comparado das línguas indo-europeias, o tratado de Frederic Schlegel sobre a língua e a filosofia indiana, a teosofia de Madame Blavatsky, o romantismo alemão, enfim, todas essas correntes de pensamentos vêm alimentar uma nova questão: como a morte e o morrer eram tratados em outras culturas?

       A Morte entra com pompa na vida. Ela deixa de ser um dos seus aspectos para ser o grande Outro. Ela passa a deusa negra da noite, a Dama Branca, a Rainha Leto. Ela aparece na pintura alemã e nórdica, no poema dos Simbolistas, enfim, é uma esfinge a interrogar. Sim, pois as descobertas no vale dos Reis, em Luxor, e Karnak colocavam a morte como parte integrante das culturas desaparecidas. Até mesmo na música, as marchas fúnebres (de Chopin ou Saint-Saens) remetem à importância do momento de passagem. Acreditava-se que a morte podia dar respostas para a vida. Como historiadora, penso que é preciso interrogar de que forma essas correntes culturais impregnavam o pensamento sobre o espiritismo, no Brasil, lembrando sempre, que as ideias são modeladas pelo seu tempo.

        De acordo com seu biógrafo mais recente, Robert Daibert Júnior, a Princesa Isabel foi uma católica extremada, resultado de uma educação muito rígida dentro dos princípios da Igreja – sua mãe, D. Teresa Cristina, italiana de Nápoles também – e que alimentava uma grande proximidade com a Igreja a ponto de não querer a restauração dos Bragança em solo brasileiro, no caso de haver separação entre a Igreja e o Estado. Demonstrei o episódio no meu livro, O Príncipe Maldito. Essa quase beatice não evitava, contudo, que ela se perguntasse sobre algo que estava tão impregnado nestes tempos: a crença nos espíritos, no Além e na contiguidade entre vivos e mortos. O episódio é absolutamente pertinente, no quadro já descrito acima.

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        Não vejo a Abolição como um gesto dadivoso, de uma princesa generosa, mas como fruto de um longo processo. Processo que envolveu intelectuais como Joaquim Nabuco, André Rebouças entre outros, jornalistas, mulheres abolicionistas e os próprios escravos, lutando por sua liberdade por meio de fugas e quilombos. Projetos abolicionistas vinham sendo aprovados desde a metade do século XIX. Mas sempre de forma a contemporizar com os grandes fazendeiros. A lei do ventre Livre e dos Sexagenários – 1871 e 1885 – buscavam preservar a produção agrícola e manter a ordem social. Como bem lembrou Robert Daibert Júnior, esse processo fez crescer a oposição dos proprietários escravocratas, que passaram a engrossar as fileiras republicanas. A Monarquia, por seu lado, tentava sintonizar-se com grupos urbanos emergentes e com as expectativas gerais da população. Por isso, investiu na propaganda que associava a Princesa Isabel à abolição e valendo-se de concepções de realeza herdadas da África, foi natural para os negros adotar a ideia da abolição como uma redenção ou favor concedido pela monarquia brasileira.

        O Santo Ofício foi extinto em 1821, em sessão formal das Cortes portuguesas. No Brasil, mais se preocupou com a defesa dos bons costumes – tese já comprovada pelo historiador Ronaldo Vainfas – do que da fé. O Espiritismo foi perseguido, pois se confundia com “curandeirismo” e “charlatanismo”. O Código penal republicano perseguia, no artigo 157 tudo o que influenciasse a credulidade pública. Estávamos em pleno período de higienização das cidades, de obsessão com a limpeza dos corpos e dos comportamentos, de luta contra o misticismo (lembram-se de Canudos?) enfim, da vontade política de criar uma Paris à beira-mar, um país “civilizado” à imagem das repúblicas contemporâneas! Portanto, nada que lembrasse um passado obscurantista, mas um futuro identificado com o progresso e a ciência.  confusão com os rituais africanos só fazia aumentar o estigma. Foi preciso a ação da FEB para descolar a imagem do Espiritismo da Umbanda e outros.

        Porto-Alegre, junto com Saldanha da Gama e Quintino Bocayuva representam a primeira fase do Espiritismo entre nós. Fase que teve como mediadores homens sinceramente empenhados em “curar um mundo doente”.  Nietzche, por exemplo, nessa mesma época, não dizia almejar ser um filósofo-médico? Curar era a palavra da moda e uma das ideias centrais que atravessou a segunda metade do Oitocentos. Curar os pobres e oprimidos, curar as prostitutas e os loucos – Freud surge na época, enfim, curar a sociedade de seus males.

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          Pelas teses espíritas então disseminadas, a humanidade entraria numa nova fase de progresso moral.  O “progresso”, lema dos positivistas, estendido a todos, era a preocupação central. Afinal, o que se queria era a harmonia perdida, dizia Conte.  Para isso era preciso uma nova sociedade, fraterna, igualitária, comunitária e feminina. A possibilidade dos indivíduos se tratarem por si mesmos, era outra preocupação da época, bem como o retorno da religião natural e espontânea, onde os diversos mundos e homem estivessem integrados. Hippolite-Léon Denizart Rivail, ou Allan Kardec anunciava o Espiritismo como uma nova Reforma religiosa esclarecida e adaptada à era da eficácia e da ciência. Portanto, a essa nova sociedade. Propunha a solidariedade de todas as instituições que já trabalhavam para a melhoria da mesma contra os detritos do catolicismo do passado: obscurantista e centralizado. Essa agenda em curso na Europa era, provavelmente, esposada pelos nossos espíritas à mesma época.

        Considero a ideia de “progresso” muito datada: século XIX. Mas a de religião, eterna. Em plena Guerra Fria, apostava-se no fim das religiões. A racionalização da vida social e o “desencantamento do mundo” – como o chamava Max Weber – parecia acompanhar a expansão das ciências. O marxismo, reinante nas instituições de conhecimento se encarregava de obscurecer e mesmo caricaturizar qualquer crença ou fé. Mas se, ao longo do último século, assistimos ao declínio de inúmeras instituições religiosas, vimos também o “religioso” renascer sob novas formas. No início do Terceiro Milênio, a experiência coletiva do sagrado e a imaginação religiosa emprestam caminhos inéditos. Redes místicas se espalham pelo mundo. Nas sociedades ditas modernas, as crenças proliferam e existe a recomposição de um sentimento religioso. Sentimento mais focado nas modalidades de crença do que nos conteúdos das mesmas. Houve, por outro lado, um estilhaçamento da esfera religiosa onde cada um acredita no que quer ou precisa. Criou-se uma espécie de “supermercado” do religioso onde se pega o que se quer. Mas a busca do sagrado está sempre presente.

  • Texto de Mary del Priore.

Isabel e D. Pedro II (1870). Foto de Joaquim José Insley Pacheco.

 

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  1. Dam Pinheiro torres

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