“S. Salvador / Baya de Todos os Sanctos” de Claes Jansz Visscher and Hessel Gerritsz
Os viajantes estrangeiros que chegavam ao Brasil nos tempos coloniais não ficavam bem impressionados com o aspectos de nossos núcleos urbanos. Segundo Emanuel Araújo, os portugueses preferiam os lugares altos para a construção das primeiras cidades brasileiras, o que tornava as ruas, geralmente em terreno acidentado, “irregulares, tortuosas e estreitas”.
Em 1696, Froget falava sobre Salvador:
“Como a cidade é alta e baixa e, por conseguinte os veículos lá são impraticáveis, os escravos fazem as vezes de cavalos e transportam de um lugar para outro as mercadorias mais pesadas”.
O Marquês do Lavradio, em 1768, fala que a cidade, vista do mar, não poderia ser mais bela, mas,
(…) “isto faz com que ela não pareça tão bem depois que agente desembarca, o sítio chamado praia, que é aonde há a maior parte do comércio é bastante fúnebre, e são terribilíssimas as ruas, porém é certo, que cá em cima a cidade tem excelentes ruas, e muitos bons edifícios, o a que chamam de Recôncavo, que são os arrabaldes, e subúrbios da cidade, que é onde todos têm as suas quintas é cousa mais deliciosa, e mais formosa, e agradável que se pode ver;”.
A sujeira e a má conservação das ruas e calçadas também eram muito presentes. Em 1692, os oficiais da Câmara:
(…) “uniformemente resolveram e assentaram que se reparasse a ladeira que chamam da Preguiça, por contar [- se] estar incapaz de se poder andar, pela ruína de seixo e pedra”.
Devido ao estado das ruas havia também um grande número de poças d’água e muita lama. Somando-se a todos estes problemas, a prática comum de se atirar o lixo às ruas e dos animais andarem soltos pela cidade.
Muitos cronistas da época alertavam para o fato de que este permanente estado de imundície era responsável por muitas doenças. De 1685 a 1692, houve um surto de febre amarela de Pernambuco a São Paulo, que teve efeitos devastadores em Salvador. Em 1667, chegou à cidade a epidemia de varíola, que voltaria a atacar de 1680 a 1684.
A arquitetura das casas também era precária, sendo estas acanhadas e construídas com material frágil. De acordo com Emanuel Araújo, as habitações eram
(…) “mal construídas,[e] eram também mal situadas. Nas localidades ribeirinhas, por exemplo, as enchentes atingiam principalmente, como sempre, as áreas pobres mais próximas ao leito dos rios.(…) Em Salvador, para ilustrar, a cada enxurrada ocorriam freqüentes desabamentos de casas fincadas ao pé da montanha ou das ladeiras”.
A vida na Colônia era encarada como um martírio pelos portugueses que vinham para cá. Emanuel Araújo, lembra que o Brasil era visto como um lugar provisório, onde se poderia fazer fortuna de maneira fácil e retornar a Portugal numa situação mais confortável. O próprio governador Tomé de Souza, em 1551, demonstrava não suportar mais a vida no Brasil e suplicava ao rei:
(…) “por amor de Deus que mande ir para uma mulher velha que tenho e uma filha moça.”
O Marquês do Lavradio mostra ainda o mesmo desgosto pelas terras da Colônia nas suas cartas, escritas em 1768 e 1769. Nada lhe agrada – o clima lhe causa “refluxos”, a população tem uma aparência ruim e um comportamento pouco recomendável.
“As novas da terra são sensaboríssimas reduzem-se a farinha de pau, tabaco português, e o que podia ser mais agradável era o açúcar até isso cá é sem sabor; estes são os objetos sobre que rolam a maior parte das conversações, e também o [s] da maior parte do meu trabalho, e, como suponho que cousa nenhuma destas te interessam parece-me escusado o fazer-te deste negócio uma grande narração.”
O Marquês também não poupa ironia para descrever a cidade de Salvador:
“(…) os primeiros perfumes com que me incensaram quando desembarquei, e pelas ruas por onde eu passava, eram da mais refinada e especial catinga que conservam nas suas casoilas todos estes moradores; acompanhava-me uma grande cáfila de cafres gritando à roda de mim, que me aconteciam; nas ruas olhava para as janelas, parecia-me tudo gentes doentes, e que havia muito não logravam saúde, todas com as cabeças atadas com lenços brancos, de forma que me obrigou a perguntar se tinha acabado de haver nesta terra alguma epidemia (…).”
Luís dos Santos Vilhena também não tem uma opinião favorável à Colônia: “(…) a morada da pobreza, o berço da preguiça e o teatro dos vícios.” E sobre as causas da pobreza da população:
“Todo o mais povo, à exceção de alguns comerciantes e alguns lavradores aparatosos, como os senhores de engenho, é uma congregação de pobres; pois além de serem muito poucas as artes mecânicas e fábricas em que possam empregar-se, nelas mesmas não o fazem, pelo ócio que professam e conseqüência que daqui pode tirar-se é que infalivelmente são pobríssimas.”
Miséria, preguiça, epidemias, sujeira, clima excessivamente quente, escassez de produtos, além de uma população de má aparência, moral duvidosa e contaminada pela miscigenação com os negros e os índios. Na visão preconceituosa de muitos europeus, a Colônia era assim: um lugar repleto de provações, onde a sobrevivência era difícil e a existência árdua.
– Márcia Pinna Raspanti.
Grato pela consideração dos seus comentários complementares. E parabéns pelo texto.
Gostaria de manifestar que tenho o maior apreço e respeito pelo seu trabalho à frente deste Blog. Tem de ser uma pessoa bastante preparada e de valor para ter sido escolhida por uma historiadora de prestígio e competência como é a Prof. Mary del Priore. Selecionar diariamente temas e textos e ainda ir “pinçando” regularmente trechos dos livros da Prof. Mary, e adicionar-lhes breves comentários, também é trabalhoso. A questão é que, certas vezes, a utilização de certos adjetivos torna susceptível a geração de polêmicas, como neste caso, em que entendi que a visão dos visitantes sobre hábitos praticados no Rio de Janeiro e em Salvador entre os séculos XVII e XIX não seria preconceituosa, e sim meramente realista. Afinal, eles comentavam o que tinham visto, e condenavam o que de pior tinham visto, como os casos citados neste artigo.
Vá em frente, estimada Prof. Márcia. Tem um belo presente e terá um brilhante futuro. E não se deixe abater pelas críticas, as quais normalmente tendem a ser construtivas.
Obrigada, José, fico feliz que você aprecie o nosso trabalho no blog. Nesse caso específico, o texto é meu, baseado em minha dissertação de mestrado (“João Antônio Andreoni: as duas faces da mesma moeda”). Não se deve perder de vista que as narrativas desses visitantes seguem o padrão dos relatos de viagem, muito populares naqueles tempos, tanto que não há muitas variações do que é descrito. Existe ainda a questão da miscigenação que escandalizava muitos desses estrangeiros – devemos ter em mente que, na época, os conceitos de pureza de sangue eram muito caros às sociedades europeias.O importante quando se avalia esse tipo de texto é considerar o contexto histórico e mental em que ele se insere. Muitos viajantes passaram poucos dias na Colônia, conheceram apenas parte de uma cidade, alguns poucos moradores, mas consideraram aquilo que foi visto como um padrão de comportamento de todos os brasileiros. Com base em todos os relatos que li, cheguei à conclusão de que há uma dose de preconceito que não pode ser ignorada. Agora. quanto de realismo e quanto de preconceito existe nesses relatos? Eis um ótimo tema para pesquisas.
Os visitantes estrangeiros (pintores, gravuristas, artistas do canto e do teatro, músicos, historiadores, pesquisadores, médicos, sanitaristas, arquitetos, engenheiros, militares, marinheiros, etc.) que passaram pelo Rio de Janeiro e Salvador entre os séculos 17 e 19 tiveram péssima impressão do que viram em relação à repulsiva e falta de asseio da população – inclusive das elites e da realeza – e dos “sistemas” de saneamento particular e público. Será que todos foram preconceituosos ou apenas realistas?
Olá, José. Sem dúvida, a situação das cidades coloniais era bastante precária, mas devemos também levar em conta uma dose de preconceito dos visitantes. Obrigada.