Até quando?

Infelizmente, terei que voltar ao um tema extremamente desagradável: o grande número de estupros no Brasil. Todos os dias, os noticiários nos mostram histórias macabras, terríveis, chocantes. Duas mulheres violentadas e atropeladas em um canavial em Pernambuco, uma delas morreu; uma jovem de 19 anos, atacada e morta pelo padrasto no Recife; uma criança de quatro anos morreu, vítima dos abusos sexuais do próprio pai, no Rio Grande do Sul. Ainda tortura nossa lembrança o ataque a quatro meninas no Piauí, bem como ainda não conseguimos digerir as notícias de que estudantes sofrem abuso sexual de colegas nas melhores universidades do país. São casos e mais casos em todas as esferas da sociedade, sem falar nas inúmeras ocorrências que sequer são noticiadas.

As vítimas são, em sua imensa maioria, mulheres de diferentes idades. Muitas vezes, crianças. E os algozes? Podem ser pais, tios, avós, vizinhos, primos, colegas de escola e trabalho ou até completos desconhecidos. São tantas histórias assustadoras que estamos ficando anestesiados. O que fazer? Leis mais duras? Mais muros e cercas? Mais policiamento? Devemos nos trancar em casa, junto com nossas filhas? Vinganças e linchamentos iriam coibir as futuras agressões? Infelizmente, parece que nada surte efeito nessas vergonhosas estatísticas.

Quando houve o caso do estupro coletivo no Piauí, houve grande repercussão porque os crimes tinham sido praticados, segundo a polícia, por quatro menores, além de um homem de cerca de 40 anos, que teria planejado tudo. O episódio se tornou emblemático para os defensores da redução da maioridade penal, aparecendo insistentemente na mídia por ter ocorrido na mesma época em que tramitava um projeto de lei a respeito do assunto. Mas, em geral, esse tipo de caso gera poucas reações. A mídia não lhes dá o devido destaque ou o faz com sensacionalismo. Ainda há uma indisfarçável desconfiança em relação às vítimas. “Ela não está mentindo? Não provocou? Ela era direita?”

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Existem muitas medidas relativas à segurança pública que devem ser debatidas e implementadas. Mas, nosso objetivo aqui é outro, pois há vários especialistas nessa área que podem falar com mais propriedade sobre isso. Não estou dizendo que esse tipo de providência não é necessária. Acredito, contudo, que sem uma mudança de mentalidade não conseguiremos reduzir significativamente esses casos. Enquanto não começarmos a ensinar as novas gerações a se respeitarem, independente do gênero ou orientação sexual, não acredito que atingiremos bons resultados. Ensinar a igualdade de fato, o que vai muito além da bobagem de não comprar roupinhas cor de rosa para as meninas…

Vivemos tempos de individualismo extremo. “Tudo para mim e meu grupo, nada para os outros”.  E quem são os outros? São os diferentes de mim, podem ser de outra classe social, outro gênero, outra religião ou até torcer para outro time de futebol. Queremos excluir o outro, anulá-lo, desqualificá-lo. Falta empatia, falta respeito. Isso associado à nossa herança patriarcal, que enxerga a  mulher como ser inferior, quando não perigoso, traz as consequências dramáticas que vivenciamos.

Por isso, acho que é preciso mudar comportamentos e linguagens. Muitas vezes, o machismo está tão enraizado que nem percebemos. Para não sermos chamadas de chatas ou chatos, nos calamos diante de piadas, insinuações, xingamentos, pequenos atos. É curioso que muitas mulheres não suportam serem chamadas de “feministas”, é quase um xingamento para elas. Criadas nesse ambiente que valoriza o masculino, iludem-se, achando que ao adotar o discurso dominante serão reconhecidas como fortes e independentes. Não querem se fazer de “vítimas”, dizem. Entretanto, essa postura não as livra dessa herança maldita. Negar o problema não faz com que ele desapareça.

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O estupro, o abuso e a violência são resultado dessa mentalidade machista, individualista, que estimula relações baseadas nos jogos de poder. Não, não são apenas os doentes e os psicopatas que praticam crimes sexuais. Os “bons rapazes” também o fazem, como já vimos tantas vezes acontecer, porque eles também foram criados para serem servidos pelas mulheres, para ver seus corpos como simples objetos, para não nos verem como iguais.

Enquanto isso não mudar, continuaremos a viver com medo, sofrendo caladas pelas milhares de vítimas indefesas.

Texto de Márcia Pinna Raspanti.

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Edvard Munch-Nu“Nu”, de Edvard Munch.

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