As “filhas de Eva” e a cultura do estupro

         Estupro é crime em qualquer circunstância. É um ato terrível, devastador, que causa vergonha e acaba com a autoestima da vítima. Não tem nada a ver com aparência ou com comportamento. É uma violência gratuita e monstruosa. Por mais óbvias que pareçam as afirmações acima, muitos brasileiros, homens e mulheres, ainda acham que, nesse tipo de crime, a culpa é da vítima. De acordo com uma pesquisa feita pelo Datafolha e encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgada ontem, um em cada três brasileiros concorda que a mulher vítima de estupro é, de alguma forma, responsável pela violência sexual sofrida. Dos entrevistados, 30% concordam com a seguinte afirmação: “A mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”. (confira a pesquisa: Pesquisa Datafolha)

Infelizmente, parte da nossa sociedade ainda separa as mulheres entre “direitas” e “vadias”. Nos tempos coloniais, a violação de uma donzela, de boa família, era punida com severidade. As promíscuas, as escravas ou as mulheres “de cor” não tinham a mesma proteção. No século XIX, a comunidade exercia intensa e permanente vigilância sobre a honra da mulher. Muitas eram denunciadas por cartas anônimas, que as acusavam de manter relações suspeitas com homens. E pagavam um alto preço por isso. Segundo Mary del Priore, a esposa era a responsável pela felicidade dos cônjuges. “E felicidade despida de sensações consideradas desonrosas e inexplicáveis! Afinal, a esposa era um anjo! Perante a vontade do pai e do marido, qualquer ideia ou gesto diferente era visto como indisciplina e rebeldia. Cair ou se perder?! Havia uma obsessão pelo hímen”.

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O Código Civil distinguia as que o tinham, “as honestas”, das “desonestas”: “umas dignas da proteção das leis e da severidade do juiz. Tímidas, ingênuas, incautas foram vítimas de atentados contra a sua honra. Mas há outras, corrompidas e ambiciosas que procuram fazer chantagem, especular com a fortuna ou com a posição social do homem, atribuindo-lhe a responsabilidade de uma sedução que não existiu, porque elas propositadamente a provocaram ou uma suposta violência, imaginária, fictícia”, admoestava o grande jurista Viveiros de Castro. A historiadora destaca que o Código Penal de 1890 previa a anulação do casamento se o homem constatasse que a mulher já não era mais virgem.

No século XX, a situação não mudaria muito até a chamada Revolução Sexual, nos anos 60. Nos Anos Dourados, os rapazes eram ensinados a separar a “moça para casar” das “para se divertir”. A curra era um crime bastante presente na sociedade da época, inclusive entre as classes mais abastadas, e as justificativas dos agressores eram sempre as mesmas: “Ela pediu”. “Quem mandou ir sozinha à casa de um homem”. “Não se dava ao respeito”…nada tão diferente do que escutamos hoje, em muitos casos de violência sexual.

Quantos casos recentes vieram a público e parte da sociedade (o terrível tribunal da internet) imediatamente duvidou da palavra das vítimas? Quantos afirmam que elas “mentiram” ou que “estavam querendo”? Assim que é noticiado esse tipo de crime, começa uma investigação implacável sobre a vida da vítima – e não do agressor. Era “direita”? Como estava vestida? Já tem filho? Frequenta bares, bailes funk, baladas?? Qualquer alegação dos acusados já é tomada como verdade absoluta, enquanto as afirmações das vítimas são sempre encaradas com desconfiança. “Se estivesse em casa, nada disso teria acontecido…”

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A mulher sempre foi vista como objeto do desejo na maioria das culturas e, em pleno século XXI, ainda não conseguimos nos desvencilhar dessa amarra. Somos julgadas pela nossa aparência. Nossos corpos, cobertos ou desnudos, são considerados um território livre, que pode ser tomado à força, se for preciso. Nossa palavra é sempre classificada como duvidosa, pois como somos  “fracas” podemos mentir para nos proteger. O discurso de inferiorização do gênero feminino tem raízes antigas. Não há nada de errado em querermos ser atraentes, mas não podemos mais ser tratadas como objeto ou mercadoria. Historicamente, a beleza e a sensualidade femininas sempre foram valorizadas e, ao mesmo tempo, temidas. As “filhas de Eva” eram seres traiçoeiros:

“Sexo belo ou sexo frágil, tais denominações vinculam-se às imagens que nossa sociedade fez deles, de sua beleza ou de sua saúde. No passado, o corpo da mulher era visto com as marcas da exclusão e da inferioridade. Cristalizada pelas formas de pensar de uma sociedade masculina, a evocação das imagens do corpo e da identidade feminina, na pluma de diferentes autores, refletia apenas subordinação: ele era menor, os ossos pequenos, as carnes moles e esponjosas, e o caráter, débil. A subordinação expressava-se, ainda, na capacidade de reproduzir, quando solicitada pelos homens. Contudo, na outra ponta dessa submissão, a mulher era senhora de beleza e sensualidade – aliás, beleza considerada perigosa, pois capaz de perverter os homens; sensualidade mortal, pois se comparava a vagina a um poço sem fundo, no qual o sexo oposto naufragava. As noções de feminilidade e corporeidade sempre estiveram, portanto, muito ligadas em nossa cultura”, diz Mary del Priore.

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Até quando?

  • Texto de Márcia Pinna Raspanti. 

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“Adão e Eva”, de Peter Paul Rubens.

2 Comentários

  1. Natalia Navarro
    • Márcia

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