As relações entre as classes trabalhadoras e a indumentária podem abrir novas perspectivas aos historiadores e pesquisadores. Existe um artigo muito interessante no livro “Mundos do Trabalho”, de Eric Hobsbawm, sobre a atuação política dos sapateiros. Em tempos em que os sapatos viraram símbolo de status – lembremos dos caríssimos e cobiçados modelos de grifes como Christian Louboutin-, até nos esquecemos que os sapatos eram artigos de luxo para os pobres dos séculos passados, sendo fundamentais para quem atuava nos campos ou cidades, percorrendo longas distâncias a pé. Mesmo sendo uma necessidade básica, não eram todos que podiam ter um par de botinas. Quem as tinha, cuidava deste bem precioso e útil, remendando e consertando, com a finalidade de prolongar a vida dos calçados ao máximo. Dentro desse contexto, surge a figura genial do sapateiro.
Na Europa do século XIX, conta-nos Hobsbawm, esta categoria de trabalhadores/artesãos era considerada radical. Se houvesse uma revolta entre os mais pobres, lá estaria o sapateiro da vila como porta-voz da população ou organizador das reivindicações. Na maioria das vezes, era o “subversivo” sapateiro que tinha colocado ideias perigosas na cabeça do povo, pelo menos, aos olhos dos poderosos. Na verdade, o espaço da oficina ou sapataria era muito usado para discutir política, falar sobre as agruras do cotidiano e ler. Isto mesmo: a prática de ler em voz alta para todos os que atuavam na oficina (artesãos ou artífices mais velhos, aprendizes e ajudantes) era comum. Tais reuniões facilitavam a organização dos trabalhadores.
O velho sapateiro era visto como um sábio nas aldeias. Era tão respeitado intelectualmente quanto o professor de escola (de crianças). Isto ocorria não apenas na Grã-Bretanha, mas, também na França e na Alemanha. Em meados do século XX, os sapateiros perderam influência no movimentos sindicais para outras categorias mais fortes e organizadas. Por isso, talvez seja tão surpreendente o papel destes artífices na política do século XIX.
Tudo isso me fez lembrar de uma outra figura famosa na Península Ibérica. Na história de Portugal, tivemos ao menos um sapateiro que causou impacto enorme com suas teorias: Gonçalo Annes de Bandarra. Este sapateiro e poeta popular do século XVI é famoso até os dias de hoje por suas profecias de teor messiânico. Foi perseguido pela Inquisição e proibido de comentar os Livros Sagrados. Mas, o Santo Ofício não impediu que seus escritos percorressem séculos. Suas profecias foram interpretadas posteriormente, no século XVII, como previsões da volta do rei D. Sebastião, que desapareceu em uma batalha contra os turcos. O Sebastianismo influenciou enormemente Portugal, inclusive o grande orador jesuíta Padre Antônio Vieira.
Politizados, artistas, profetas e poetas, eis uma categoria de trabalhadores que sempre nos traz surpresas. Vejam os belos versos que Fernando Pessoa dedicou a Bandarra:
“Sonhava, anónimo e disperso,
O Império por Deus mesmo visto,
Confuso como o Universo
E plebeu como Jesus Cristo.
Não foi nem santo nem herói,
Mas Deus sagrou com Seu sinal
Este, cujo coração foi
Não português, mas Portugal”
(Fernando Pessoa).
Márcia Pinna Raspanti
Sapateiro, de Abraham Diepraam.