Amores em tempos de El’Rei – entre trovadores e donzelas

 

 Portugal tem, sobre o amor, uma história fundadora: aquela de D. Pedro e Inês de Castro. Inês de Castro é uma figura da história de Portugal tomada inúmeras vezes como tema de várias obras literárias, não só na literatura nacional, como também na de outros países. Esta história de amor trágico tem sido tema de obras teatrais, narrativas e líricas que abordam, em maior ou menor grau, quer o fundo psicológico de Inês, quer o conflito de que ela é centro.

A Inês de Castro histórica era filha de um fidalgo galego, D. Pedro Fernandes de Castro. Foi uma das damas que acompanharam D. Constança quando esta veio de Castela para Portugal para casar, 1336, com D. Pedro, futuro D. Pedro I, filho de D. Afonso IV. Este se apaixonou por D. Inês, de quem teve filhos, e, segundo algumas fontes, declarou ter casado com ela, secretamente, já após a morte de D. Constança. O amor de D. Pedro e D. Inês suscitou forte oposição por motivos de ordem política. Temia-se que D. Fernando – filho de D. Pedro e D. Constança – fosse afastado do trono, tornando-se herdeiros da coroa os filhos de D. Inês. Por esse motivo, D. Afonso IV, pressionado pelos seus conselheiros, mandou, em 1355, executar Inês. Como personagem, Inês de Castro tem assumido características diferentes de acordo com o autor e a época em que os textos são produzidos. A universalidade do tema do amor puro, amor que sobrevive à morte, no caso de D. Pedro; um dos aspectos fecundos da lenda é o da coroação de Inês, já morta, por D. Pedro e a tragédia da morte inocente face à mesquinhez dos interesses humanos.

Para além desta história, desde o século XIII, tal como na França, trovadores também, em Portugal, cantam amores. O tema? A ideia de que Deus se revela na exaltação amorosa, sendo a beleza feminina seu testemunho na Terra. Os cantos poéticos, modelos de breves e rigorosas artes de amar, cultuam a “dona” que encarna a sabedoria e que dá a conhecer ao homem o seu destino.

Mas não é qualquer mulher esta por quem se “apaixona” o trovador alfacinha. Ela é  elevada. Sua excelência de espírito e sua inteligência contam. A amada é portadora de valores morais que estimulam o que há de melhor no sexo masculino. Ela acende no parceiro o desejo do que lhe é superior. O homem, por sua vez, reconhece o lado sublime da mulher, renunciando, por isso ao prêmio material – o seu corpo. Neste código amoroso o que está em jogo não é a diminuição do desejo, mas a tensão em que o indivíduo se reconhece na experiência de desejar. O amor serve, assim, para aperfeiçoar moralmente a personalidade do amante. O conteúdo da maioria destas canções louva, também, a sublimação de sentimentos carnais considerados, então, inferiores. Já as “cantigas de amigo” repõe o amor na sua dimensão humana, cantando a saudade do amigo ausente e o desejo de atender às suas solicitações  sexuais.

Uma parte destas cantigas se inspira na vida popular rural. Tem como personagem principal a jovem que vai à fonte lavar a roupa, ou a que vai pentear os cabelos no rio, onde se encontra com o namorado. Ou aquela outra que na romaria espera o amigo ou que oferece aos santos promessas pelo seu regresso. Outro grupo de cantigas leva-nos para ambientes domésticos; deixa-nos ver a moça a fiar, conversando com a mãe e com as amigas; o rapaz a pedir autorização para o namoro A protagonista das estórias é desembaraçada; sabe jogar às escondidas com o amor, conhece o seu poder de sedução e o manipula; conhece a arte de provocar ciúme, do qual frequentemente também é vítima. Os romances contam desde a alvorada do primeiro encontro até o casamento.

Um terceiro conjunto de poemas, também chamados “cantares”, se situa no ambiente da corte. O seu tema é o amor cortes, tal como o trovador fidalgo o imagina sentido pela mulher. Ele, então, louva a personagem principal por sua beleza – ela é “fremosa e louçã” -, ou enumera os que dela sentem saudades. Não se trata, como nos casos anteriores de uma experiência sentimental a dois, mas, da aspiração do amante a um objeto inatingível. De um estado de tensão que só existe quanto mais ele se distancia de seu objeto do desejo. Manter este ideal de tensão parece ser o ideal do verdadeiro amante e do verdadeiro poeta. O apaixonado deveria passar inúmeras provações comparáveis aos ritos de iniciação nos graus da cavalaria, antes de chegar a drudo, amante espiritual da midons ou dama.

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Neste mesmo meio palaciano onde se aprecia e se coleciona a poesia lírica, não podia faltar o interesse pelos relatos de aventuras entre damas e cavaleiros. Eles aludem com freqüência a personagens bastante conhecidos como Tristão e Isolda, o mago Merlim, Flores e Brancaflor, na maior parte, traduzidos de romances franceses bretões. O maior e mais conhecido herói era Amadis de Gaule. Em sua estória, o tema da sensualidade se associa ao ideal do cavaleiro audaz e generoso, combativo e terno, casto e roído de desejos, a serviço de uma paixão bem humana, mas, ao preço de infindáveis dificuldades. Trata-se de uma obra profundamente conformista, que dá um lugar específico ao amor no interior de uma ordem preestabelecida, fixando-lhe regras e reconciliando-o com o casamento.

Amadis e Oriana se entregam, um ao outro, depois que uma determinada aventura os deixa as sós na floresta “naquela erva e em cima daquele manto, mais por graça e comedimento de Oriana que por desenvoltura e ousadia de Amadis”, é feita dona a mais formosa donzela do mundo”. A virtude é premiada no happy-end com que se encerra a obra. O Amadis, finalmente, se constituiria, para seu contemporâneos, num manual romanceado das virtudes do bom amante cortesão. Os discursos grandiosos dos cavaleiros, a quem os serviços amorosos impões combates pelas florestas, os diálogos dos amantes, as cartas, as mensagens de desafios ou os lamentos, oferecem modelos literários da vida fidalga entre aventuras empolgantes que eram o entretenimento preferido do alto a baixo da sociedade.

Mas a obra em que melhor se exprime o sentimento trágico de uma vida apenas orientada para o amor, é uma novela de psicologia amorosa, editada em 1554. Trata-se de “Menina e moça” de Bernardim Ribeiro. O romance começa pelo monólogo de uma jovem, em que se entrevê um amor infeliz, uma dolorosa separação, tudo isto num extenso crescendo de tristezas e perdas. Cada motivo de sofrimento é logo ultrapassado por outro, pior. O tom é o de confidência. A personagem diz não acabar o livro, pois suas mágoas não acabam nunca. Curiosidade: há um diálogo entre a donzela e uma “dona do tempo antigo” que também sofre de amores. E vemos aí as mulheres criticando os homens, por não conhecerem a importância dos cuidados amorosos. Só o isolamento doméstico – dizem elas -, lhes permite, o culto dos sentimentos delicados e à devoção que o sentimento exige.

O enredo do livro exprime a filosofia trágica do amor. Nele tudo acontece: a morte traiçoeira de dois amigos, o suicídio de suas amadas, casos sentimentais de personagens secundários, revoltas do amor-paixão contra compromissos assumidos. Fiel à tradição portuguesa, o livro insere-se na ortodoxia católica, pois se arremata por dois casamentos e um funeral. Em Menina e Moça, as mulheres são seres vitais e práticos, sempre em busca de meios viáveis para levar a cabo o imperativo de amar. O isolamento e a tristeza em que vivem, podem, contudo, ser interpretados, não como derrota, mas, como expressão do inconformismo perante os obstáculos que impedem a realização do amor.

Camões, que dedica alguns versos a “linda Inês e a seu branco colo”, se deixa influenciar por santo Agostinho. Em sua poesia, a mulher aparece, não como companheira humana, mas, como um ser angélico que sublima e apura a alma dos amantes. Ele vai buscar na Itália renascentista sua inspiração. Da mesma forma como Beatriz conduz Dante pelas alturas do paraíso, ele busca impregnar seus personagens femininos de uma luz sobrenatural que lhe transfigura as feições. Luminosos são seus cabelos de ouro e o olhar sereno. Ela tem o dom de apaziguar os ventos, a sua presença faz nascer flores. Toda a sua figura é revestimento físico de um ideal de calma e gravidade, No retrato da amada, Camões persegue Laura de Dante.

Mas a experiência vivida por Camões não poderia se limitar a tais convenções. E, assim, ele registra o conflito entre o desejo carnal e o ideal do amor desinteressado. Se o “amor é um “efeito da alma” como entender que o amante queira ver corporalmente a amada – pergunta num soneto? E a resposta nos é dada por um personagem do Auto de Filodemo, Duriano, que aponta ironicamente a contradição entre  amar pela “ativa” – fisicamente –  e amar “pela passiva” – espiritualmente -, mostrando que a ideia de dois amores já estava bem consolidada.

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Em grande parte da literatura de nossos ancestrais, o amor surge como um rebelde. Os heróis amorosos são sempre parceiros proibidos, amantes desunidos. Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa, Dante e Beatriz, Romeu e Julieta; todos amam de amores insubmissos aos ditames da lei, do costume, do casamento e da própria morte. Mas esse amor é também sempre irrealizado e portanto, fonte de sofrimento. A ambiguidade entre esse sentimento extremo que é vivido  em meio a conflitos, provocando dor e prazer alternada e simultaneamente, é representado no maneirismo do século XVII como uma “concordância discordante”.  Em Camões, por exemplo, esta visão dilacerada se manifesta em vários poemas.

 “Amor é fogo que arde sem se ver

É ferida que dói e não se sente

É um contentamento, descontente(…)”

 

 

     Na vida prática, os métodos de corte amorosa exigiam certas regras. Entre os membros das elites, por exemplo, a correspondência ajudava a codificar cada gesto. Escrever não era só comunicar, mas, também, arquivar lembranças e informações. Mais além, a carta vencia a ausência, a separação, à distância e o tempo. A ideia era estar junto, estando separado. Era prolongar, tanto quanto possível, a presença de alguém ausente. Mas não de qualquer forma. Daí autores ensinarem, passo a passo, a corte amorosa via correio. Tudo o que dissesse respeito à redação de missivas, à arte de conversar, às boas maneiras fazia parte do desejo de aprimorar, entre outras coisas, as conversações galantes.

 

Não faltavam conselhos quanto à  importância da voz do enamorado. Ela tinha que “ser clara, branda, cheia e compassada; porque a voz escura esconde as palavras; áspera e seca tira-lhe a suavidade; e muito delgada e feminina faz imprópria à ação de quem fala.”. Fundamental, era evitar “voz de flauta espremida”. No vocabulário amoroso, não era incomum comparar uma bela jovem a  “porcelana de ovos doces” e um mancebo a um “frangão espetado”.

Mas o amor não era somente coisa de elite. No universo popular também se encontram instantâneos de suas manifestações. Pense-se nas “aravias”, de influência árabe, narrativas heroicas em verso, cantadas ao som de guitarra. Nelas, desfilam esposas fiéis como D. Catarina; mulheres cativas como Brancaflor, Melisandra, e heroínas perseguidas como Silvana e Iria ou a Imperatriz Porcina. As poesias populares, assim chamadas pelos etnógrafos também celebram amor; “Com as penas do pavão, com o sangue da cotovia, hei de escrever uma carta, ao meu amor algum dia”. Nestes poemas anônimos, era comum a  presença de fontes onde enamorados se encontram, de pastoras que fogem com seus amados, ou de afirmações do tipo, “ o amor é cego, já vai me vencendo”. Cantadas na noite de são João, considerada festa ideal para adivinhas amorosas, certas músicas celebram a intercessão de santos milagreiros nas relações de pessoas que se querem bem.

Já os conto de fadas ou “de encantos” tem sempre como herói principal um príncipe ou princesa enfeitiçada ou perseguida por conhecidos desafetos: gigantes, bruxas, feiticeiras, fadas, monstros. Só com muitos trabalhos e perigos, consegue quebrar o encanto ou escapar à perseguição que lhe é movido por inimigos de seu amor. O tom geral é dramático e o desfecho, um casamento por amor.

Como as pessoas se encontravam? Vamos acompanhar, leitor, o processo de enamoramento vivenciado por Giuseppe Gorani, milanês de família ilustre, viajante e aventureiro de passagem por Portugal, entre 1765 e 1767. Em suas memórias, ele conta ter se apaixonado por uma jovem que vê, no camarote, vizinho de um teatro. Temos de sua educação e qualidades, um excelente retrato, assim como fica claro, que os envolvimentos amorosos nasciam de uma escolha masculina, baseada em critérios aleatórios.

O casamento é, todavia, cancelado, devido às críticas de amigos portugueses: tratava-se de uma família de cristãos novos ou judeus convertidos, capazes, por sua origem de comprometer a carreira do aventureiro italiano, num país onde a “pureza de sangue” era fundamental. Apesar de considerar tudo isto “absurdíssimo preconceito”, Gorani abandona os tais “olhos negros e as perfeições morais”, em função de compromissos sociais, não sem antes nos fazer acompanhar os passos da conquista amorosa: a escolha do alvo num lugar público, a visita à casa da família, a cordialidade e as demonstrações de afeto da escolhida, a decepção e ao abandono da mesma.

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 Toda esta tradição textual, na qual obras de poetas, letrados, ou moralistas sistematizam conceitos e práticas sobre o amor, era devolvida à sociedade, mesmo aos seus grupos menos cultos, por meio da literatura vulgarizada, dos contos de fadas, da pregação nos sermões dominicais, da tradição oral. Ao lado da tradição culta, consolidada em nomes como Camões ou Rodrigues Lobo, viceja uma cultura popular. Da mistura de ambas, se plasma o imaginário luso sobre o amor. Ele não é nem simples reflexo da realidade, nem é detentor de autonomia absoluta; ele é, sim, uma convergência das mentalidades, logo de modos de pensar e agir, com as árduas condições de vida, mas, também de trabalho intelectual que se tinha que enfrentar.

Dentre elas, valeria lembrar ao leitor do papel do atraso da educação de homens e sobretudo, de mulheres, em Portugal. Educadores, leigos ou religiosos passam o tempo a inculcar a ideia de que o mundo é um lugar de tentações. Os meninos devem ser afastados “dos prazeres corporais”. A “familiaridade entre os dois sexos” constituía a mais importante questão na educação das crianças. Os meninos não deviam participar nas brincadeiras ou nas conversas onde estivessem meninas. Assim, para os separar mais facilmente davam-se nas Regras para a educação cristã dos meninos, obra publicada, em 1783, exemplos extraídos das Sagradas Escrituras: “Não olheis para a mulher inconstante nos seus desejos, para que não caiais nas suas redes”; “Não fixeis os vossos olhos numa donzela para que a sua beleza não seja motivo de sua perda”; “Fiz um contrato com os meus olhos para nem ao menos pensar numa virgem”. São muitos os exemplos.

 Já os conselhos destinados às meninas, começam por sublinhar a condição inferior do seu sexo, por estar a mulher diretamente ligada ao pecado. Nessa ordem, lembra-se a inconveniência de uma infância desregrada na futura mulher. Os trabalhos domésticos, afastando-a das tentações amorosas, era o que convinha ao seu sexo. As companhias eram escolhidas pela mãe, que não devia deixá-la ler romances ou poesias, mas, apenas, salmos e hinos de igreja, de preferência em francês. A dança não era aconselhável porque era “um laço do demônio”. E a música e os concertos tinham igualmente maus efeitos para as jovens – as árias profanas “excitam as paixões, servem de isca à sensualidade”. O desprezo da beleza, simplicidade no vestir, deitar e acordar em horas certas eram regras básicas. Além do papel que a economia doméstica devia desempenhar na sua educação, os pais escolhiam o confessor e o próprio homem com quem tinham que casar.

Outra condição que devem ter influído nas concepções amorosas decorria da polarização entre segmentos sociais: de um lado a nobreza que se queria letrada. E por outro, as classes não letradas. Uma recebendo mais rapidamente os modismos amorosos importados do exterior do que a outra. Não há dúvida, contudo, que a influência da cultura literária francesa foi grande. Reis alocavam agentes em Paris, encarregados da compra de livros. As elites aristocráticas ou comerciantes aderiram à leitura de autores franceses, ajudando a difundir o gosto pelos modismos que faziam do amor, fonte permanente de sofrimento, alimentando assim o mito fundador do amor infeliz, amor que uniu D. Inês de Castro e D. Pedro.

A construção de identidades amorosas, em Portugal como no Brasil – como veremos mais adiante – enraíza-se, contudo, menos na literatura – as elites eram majoritariamente iletradas –  e mais, na interiorização, por homens e mulheres, de normas enunciadas pela Igreja ou a Ciência. O importante a observar, leitor, foram os dispositivos que asseguraram  a eficácia de um tal imaginário amoroso. Imaginário eficaz, somente, na medida em que os indivíduos contribuem ou se predispõe a eles. Nossos antepassados consentiam  e garantiam a reprodução de representações sobre o amor,  e não foram raras as vezes em que eles deslocaram ou subverteram a relação de dominação que a Igreja exercia na sociedade, aproximando-se, e mesmo inspirando, os ideais cantados em prosa e verso. – Mary del Priore

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