Amor: castigo divino ou obra do demônio?

“O amor tendo abusado dos olhos, como verdadeiros espiões e porteiros da alma, deixa-se deslizar docemente por um par de canais e caminha insensivelmente pelas veias até o fígado e imprime subitamente um desejo ardente da coisa que é ou parece amável, acende a concupiscência e por este desejo começa toda a sedição … vai diretamente ganhando a cidadela do coração, o qual, estando uma vez mais assegurado como o mais forte lugar, ataca depois tão vivamente a razão e todas as potências nobres do cérebro, que ela se sujeita e torna-se totalmente escrava.” (João Curvo de Semedo)

Para evitar a febre amorosa, evitava-se dormir de costas, tomavam-se banhos gelados e usavam-se remédios frios e úmidos, como águas de alface e grãos de cânfora. Costumava-se untar rins, pênis e períneo com unguentos feitos de “ervas muito frias”. Os médicos do período preocupavam-se tanto com os excessos da luxúria quanto com a temida impotência. Confundindo o medo da segunda com os excessos da primeira, os esculápios não duvidavam em diagnosticar: “o diabo, autor de toda a maldade, pode resfriar os amores lícitos e acender os ilícitos”.

Esse tipo de asserção era comum. As doenças, e entre elas a impotência, eram consideradas desregramentos do espírito punidos com o açoite divino ou um mal demoníaco ou feitiço diabólico. Esse imaginário, que tornava o corpo um extrato do céu ou do inferno, constituía-se num saber capaz de orientar a medicina, suprindo provisoriamente as lacunas de seus conhecimentos.

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No século XVII, a medicina que era praticada em Portugal ou em seus domínios no além-mar ecoava as diretrizes da Igreja, no sentido de adequar o uso da sexualidade ao casamento. E a ele só. Qualquer outra manifestação erótica ou sensual acendia o sinal de alarme. Inúmeras prescrições afloravam nos textos de médicos letrados ou paramédicos, cujas observações bracejavam no desconhecimento da ciência médica, mas que se preocupavam em anotar todos os possíveis desvios. Num clima de crenças extremamente arraigadas no que diz respeito ao uso e aos cuidados com o corpo, proliferava um saber que se valia de analogias, esconjuros e benzeduras, drogas e elixires afamados. E na crença de que Deus. Afinal, só Ele, podia contra os perigos dos pecados da carne.

Eis por que Bernardo Pereira, conhecido médico da Corte portuguesa, analisava com tanta insistência a luxúria — sublinhe-se, outrora, um pecado, agora, doença — que sua descrição menciona literalmente sintomas, delírio, contágio, infecção:

“aquele fogo ou febre ardentíssima que introduz na alma infernais incêndios, somente se apaga e se modera com o uso da oração e penitência, com a lembrança e consideração do inferno. Se acaso há tardança nessa aplicação, degenera em terribilíssimos sintomas e na maior parte das vezes imedicáveis, pois passa a delírio, que descompõem a honestidade dos costumes, e a contágio, que infecciona a pureza dos afetos”.

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E, concluindo, faz a analogia simbólica da medicalização do pecado, remetendo a origem das doenças ao ato rebelde de Adão:

“ao pecado do primeiro homem, chama a Igreja peste mortal … para te curar desta tua enfermidade, veio do céu à terra o Divino Médico … aplicou a tua doença o maior remédio … um lavatório não de água elementar, mas sim de seu próprio sangue preparado na Botica do calvário … para te curar das recaídas deixou na Igreja sete remédios receitados que foram os sete sacramentos”. E o enfermo, “tocado da peste do pecado, deve procurar médico sacerdote para lhe confeccionar este emplastro saudável para a sua alma, como triaga medicinal, que haja de extinguir o veneno do pecado; para o que deve dar inteira conta e verdadeira informação de toda a doença que padece e dos sintomas que o oprimem”.

O texto de Pereira expõe de forma exemplar a fusão entre a confissão e o interrogatório médico, o pecado e a doença, o confessor e o médico. A presença da impureza moral ou física no quadro da vida conjugal erigia-se então como termômetro para o coito, fazendo, sobretudo da esterilidade feminina, um estigma. O excesso de interesse pelo sexo, visto como “desordenamento” por padres e médicos, tanto podia atrasar quanto impedir uma gravidez. E estava associado pelos tratadistas a um castigo de Deus às mulheres lascivas.

Em nome da sacralidade e dos fins do matrimônio, a impotência de ambos os sexos constituía-se, aos olhos da Igreja, em “impedimento dirimente”, levando à anulação do mesmo. Nicolas Venette, autor do importante La génération de l’homme ou Tableau de l’amour conjugal, obra de 1696, repetia os antigos afirmando que as mulheres eram mais responsáveis pela esterilidade do que os homens. Sua opinião encontrava respaldo em presunções populares, correntes nos séculos XVI e XVII, de que as mulheres muito bonitas eram impotentes por castigo divino, irado com suas vaidades. E as muito feias também o eram, num castigo divino, por sua inveja das bonitas. – Mary del Priore

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“Vênus”, de Urbino Vecellio.

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