AIDS: o pânico do desconhecimento

Contra as mudanças trazidas pela chamada revolução sexual, o que foi considerado um “castigo para pecados” caiu dos céus como um raio.  A tranquilidade sexual que vinha sendo conquistada, sumiu! A revelação de casos de AIDS na sociedade propagou-se com rapidez. Conhecidos artistas e cantores eram apontados com suspeição: Lauro Corona, Cazuza, Renato Russo… Era o “câncer gay” – murmurava-se. O fato de tratar-se de uma doença sexualmente transmissível simbolizava um mundo de modos de vida antes invisível para a sociedade. As reações foram ambíguas, pois, o alvo, no primeiro momento, era a população homossexual. Manchas no rosto, diarréias constantes e dores acusavam os “infectados”. Quando se descobriu que a transmissão se podia fazer via transfusão de sangue, o alarme soou. Passou-se a falar em abstinência, preservativos e fidelidade.

Nos primeiros anos da década de 1980, a divulgação de informações sobre a Aids oscilou entre tratar a questão de forma moral – condenando os grupos mais contaminados – e de fazê-lo pelo viés da saúde pública, procurando garantir tratamentos e remédios apropriados. Matérias choviam nos jornais, na maior parte das vezes, traduzidas do exterior. Entre setembro de 1897 e dezembro de 1996, foram quase duas matérias por dia em importantes como o paulista Folha de São Paulo.

Na TV, o programa Fantástico da Rede Globo de Televisão, caracterizado por apresentar histórias extraordinárias, grotescas ou bizarras divulgou o assunto para quase 90% dos lares brasileiros. A 27 de março de 1983, a voz do locutor Hélio Costa anunciou o que era a “Síndrome de Deficiência Imunológica – Epidemia do Século”. O assunto era “grave”, a doença “misteriosa”, a epidemia “violenta, o mal “fulminante” e o avanço “assustador”. Nos primeiros anos da década de 80, o clima era aterrorizante. A partir de 85, o governo brasileiro oficializou um programa nacional voltado para a doença, revelando um sistema público deficiente. Até 1991, quando o jogador de basquete americano Magic Johnson anuncia ter contraído AIDS de uma mulher, “drogados” e “gays” pareciam ser as únicas vítimas. Falava-se pouco em prevenção. Muito em morte. No final dos anos 80, os doentes ficavam em pavilhões de isolamento e o pessoal que fazia enfermagem tinha “medo” dos pacientes. Os familiares eram discriminados. Até os médicos também sabiam pouco. Na época, entrevistada sobre o filho doente, certa mãe confessou ao pesquisador: “na minha cabeça, a AIDS estava tão longe para mim… uma coisa tão distante que se ouvia falar como hoje se fala nos clones…no Brasil ninguém falava em AIDS”.

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Em 1988, reações tiveram início. Foi fundado o Grupo G.A.P.A. (Grupo de apoio e prevenção da Aids), na Bahia.  O jornalista Herbert Daniel sentindo-se agredido pelo tratamento e preconceito dispensado aos aidéticos, publicou Vida antes da morte: “um chamamento à solidariedade como alternativa à morte civil. O desafio era lutar contra a moléstia ajudando a construir a cidadania.

Ao final da década, as mudanças provocadas pelo vírus tinham dado um nó nos costumes. Pessoas reavaliavam hábitos sexuais, estilos de vida, princípios morais e padrões de cultura. Virgindade e fidelidade conjugal voltavam a ser exigidos. Ninguém estava acima de suspeitas. Sintomas, sumiço súbito, emagrecimento eram sinais alarmantes. O cantor Cazuza foi internado: a imprensa protegia. Tratava-se apenas de uma infecção bacteriana contraída em uma recente turnê do Barão Vermelho na Amazônia. Até o cantor defendeu-se: “É a peste negra do século e ninguém pode descartar a hipótese de contraí-la”. Quanto aos boatos, “é o velho mito de que todo artista é promíscuo”.

Jovens passaram a se preocupar e corriam para pediatras e clínicos em busca de informação. Para muitos, uma dor de garganta podia ser mau sinal. Outros tantos evitavam, simplesmente, relações sexuais. O jornal baiano “A Tarde”, em janeiro de 1985, chegou a propor a erradicação dos “elementos que podem transmitir a peste gay”. As maiores vítimas da histeria provocada pela Aids foram membros da comunidade homossexual cujas famílias reagiam ao peso social e a dependência provocada pela doença. Os que ainda estavam “no armário”, chocavam ao revelar sua identidade. Celso Curi, jornalista e porta-voz da comunidade gay de São Paulo, explicava: “Morrer de AIDS é um problema, é como deixar para os parentes e amigos um enorme nariz de pinóquio”. Esse tipo de rejeição fazia aumentar também o número de suicídios entre as pessoas que contraíam a doença. Entrevistado por Veja, o estilista Clodovil relatou: “Agora eu tenho receio, não é mais aquela coisa solta como antes. Eu não quero mais transar com pessoas fáceis, e as pessoas difíceis fecharam-se definitivamente com a doença. (…) Quando se  está com uma pessoa, é difícil ignorar que ela pode ter estado com alguém doente. Inevitavelmente, a gente sempre perde um pouco do prazer. O pânico está instalado”.

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A vida sexual parecia fortemente ameaçada pela doença. Uma placa de chumbo abatia-se sobre a frenética busca do prazer. Voltavam à cena a abstinência ou a monogamia sexual, o uso de preservativos, a cautela no uso de drogas, o fim do culto à magreza.  Segundo Veja, A prática do sexo anal, as escapadas no mundo da prostituição feminina, a alegre roda-viva de parcerias sexuais podem estar entrando em declínio, mesmo que só temporariamente, na esteira dos primeiros sustos. Significativamente, as zonas de prostituição tanto feminina quanto masculina nas principais capitais do Ocidente registram uma sensível baixa de movimento”. Para o antropólogo argentino Nestor Perlongher, a AIDS estava sendo utilizada pelos grupos conservadores para disciplinar o comportamento sexual. “É uma contrarrevolução que se volta também contra os heterossexuais não monogâmicos” – reagia.

Nos anos 90, os progressos da informação fizeram recuar o significado moralista que dava-se à Aids. A partir dos anos 2.000, vozes cada vez mais altas levantaram-se em favor de ações governamentais em favor do tratamento de soropositivos. Predomina, desde então, o discurso oficial e científico sobre a doença. As vozes dos atingidos ainda se ouvem mal. Porém, fala-se mais em gente que “vive” com o HIV e não naqueles que “morrem”. – Texto de Mary del Priore.

 

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