Abaixo a feiura

No Brasil, o esporte, responsável indireto por tantas mudanças, foi introduzido pelos imigrantes e por alguns representantes das oligarquias em contato com as modas europeias, nas primeiras décadas do século XX. Segundo Mônica Schpun, a prática desportiva era destinada a combater o ócio e os hábitos mundanos da juventude, tendo, portanto, uma função profilática. Num número da revista Sports, o educador Fernando de Azevedo definia:

 “Os exercícios, pois, que mais convêm à mulher são aqueles que aumentam a flexibilidade e a destreza da coluna vertebral, isto é, os movimentos  que, sujeitos às leis da cadência e do ritmo, se tornam, por assim dizer, a poesia da locomoção. É que na flexibilidade do tronco e da harmonia dos movimentos depende um dos maiores encantos da mulher: a GRAÇA. A educação física para moças deve ser, pois, higiênica e estética, e nunca atlética”.

A despeito da presença de mulheres nas raias das piscinas ou nas quadras de tênis dos clubes privados, o mundo onde, de fato, estava presente era o da casa. Sua vida doméstica ganhava, contudo, valores de consumo nunca antes vistos no Brasil. Certos produtos de beleza começavam a ser industrializados. Quem podia, cedia aos encantos dos importados. Guerlayn e Coty eram as marcas mais procuradas. Pequenas oficinas domésticas produziam cremes e pós para o rosto e olhos, perfumes e maquiagem em geral, vendidos de porta em porta para consumidoras de camadas médias. A moda também se desenvolvia. As lojas de luxo importavam vestidos e moldes; algumas chegavam mesmo a oferecer os serviços dos ateliês de costura para consertos e ajustes, ou ainda para fazer roupas íntimas. Costureiras e chapeleiras de origem estrangeira se instalavam com suas lojas.

Vitrines e manequins enfeitavam grandes lojas como o Mappin Stores de São Paulo, cujos produtos eram também vendidos por meio de catálogos, de encomendas por telefone e correio e de serviço de entregas. Anúncios em francês visavam atrair a clientela mais sofisticada, apregoando robes d’aprés midi et de soirées – vestidos sociais e de gala. A inovação de saldos e liquidações permitia às camadas urbanas médias adotarem roupa de gente rica. Mais do que consumir, com os olhos ou a bolsa, os milhares de novos produtos expostos em vitrines, anúncios públicos e revistas femininas, as mulheres imbuíam-se, lentamente, de uma nova preocupação: a apresentação física, que as introduzia na vida urbana de maneira conveniente. A palavra de ordem, portanto, tornou-se beleza! A feiura devia ser banida.

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A preocupação de ser bela não era novidade. Mas, aqui, a percepção da beleza feminina transformava-se em algo mais palpável. Os concursos de beleza, recém-inventados, chancelavam essa preocupação, ao lado de centenas de imagens femininas que invadiam a imprensa, como “conselheiras de beleza”. Todo tipo de melhora devia ser estimulado. O misto de beleza e elegância, antes apanágio do romantismo, começava a ceder às formas de exibição do corpo feminino. O discurso higienista, tão ativo entre os anos 1920 e 1930, estimulava a vida das mulheres, menos cobertas e mais fortificadas, ao ar livre. O hábito dos esportes, a fundação de clubes, a ênfase na dança, estimulada pela recém-inventada indústria fonográfica, instigavam a exposição dos corpos. Instalou-se a busca da aparência sã. A medicina passava a sublinhar a importância de exercícios e vida saudável para preservar, não somente a saúde, mas a frescura da tez, a pele saudável, o corpo firme e jovem. Acreditava-se que os defeitos físicos poderiam ser corrigidos, não à custa de toneladas de maquiagem ou qualquer outro artifício, mas por outros meios salutares, como a vida higiênica, disciplinada e moderada. Vejamos o conselho da Revista Feminina de outubro de 1920:

“As feias […] não devem fingir-se belas. Contentem-se em ser feias, tratem de educar seu espírito, de viver higienicamente para adquirir saúde, de nutrir-se convenientemente, de ser simples, bem-educadas e meigas. A vida higiênica, a boa nutrição, os esportes garantir-lhes-ão a saúde, a boa pele, os bons dentes, a harmonia das formas, o desembaraço dos gestos e a graça das atitudes; a leitura sã, o cultivo do espírito, dar-lhe-ão inteligência e à fronte; a bondade, a simplicidade, a meiguice torná-la-ão perturbadoramente simpáticas. Deixarão, pois de ser feias; ou, se continuam feias, valerão mais do que as belas, terão mais prestígio pessoal, impor-se-ão às simpatias gerais”.

Mas ser feia, nas primeiras décadas do século XX, tinha seus pontos negativos. Todas as mulheres sabiam que a fotografia, o cinema e a imprensa divulgavam padrões que deviam ser seguidos, excluindo as que deles não se aproximassem. Tipos femininos criados por Clara Bow, Alice White, Colleen Moore incentivavam imagens sobre “garotas modernas”, misto de alegria, mocidade, jazz e coquetéis! Um controle mais rígido sobre a apresentação pessoal era exigido, até em empregos ocupados por mulheres. A chamada “boa aparência” impunha-se; os bons casamentos, sobretudo, dependiam dela. Olhos e boca, agora, graças ao batom industrial, passavam a ser o centro das atenções. Theda Bara e Greta Garbo arrasavam com sua malícia singular; eram o símbolo da mulher-mistério. O aparato colocado a serviço da beleza corporal, feito de receitas de fabrico doméstico, de produtos farmacêuticos ou de artifícios de maquiagem, parecia prometer à mulher a possibilidade de, em não sendo bela, tornar-se assim. Havia salvação! A propalada coquetterie, desdobrada em cursos de maquiagem, cuidados de pele e cabelo, massagens e tratamentos dos mais variados, cursos para aprender a caminhar e a gesticular, constituía um investimento – as feias teriam uma chance.

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As palavras francesas como coquetterie, literalmente “a preocupação de se valorizar para agradar”, e allure, distinção de porte, somavam-se outras em inglês, influência do cinema: sex appeal e it. A primeira dispensa tradução; a segunda referia-se ao “quê” de sedutora que havia em cada mulher. “It é um dom de atração […] uma qualidade passiva, que atrai a atenção e desperta o desejo. A mulher deve possuir o it para atrair o homem”, explicava o articulista de Cinearte em 1928. Já o sex appeal, segundo o mesmo cronista, definia-se pelo físico “atraente e perfeito, pelas atitudes provocantes, o olhar liquefeito e perigoso, no andar lento e sensual, nos lábios contornados e convidativos. As que têm (isso) os homens seus escravos são”. A “malícia”, outro ingrediente indispensável ao sucesso feminino, era sugerida tacitamente na estética cinematográfica.

Graças ao cinema norte-americano, novas imagens femininas se multiplicavam. A moda, diz a historiadora Fernanda Bicalho, foi uma das principais articuladoras do novo ideal estético imposto pela indústria cinematográfica norte-americana. Não era mais Paris quem a ditava, mas os estúdios de Hollywood. O que estava em jogo era a transformação do corpo feminino em objeto de desejo fetichista. Se por um lado a estética cinematográfica representava a mentalidade moderna e um domínio em meio ao qual a mulher podia tomar iniciativas, por outro, a sensualidade que emanava de sua representação a transformava em objeto passivo de consumo. A indumentária usada pelas atrizes, e copiada no mundo inteiro, não fazia mais do que traduzir metaforicamente a personalidade feminina. Ora, o poder de sedução de estrelas do cinema marcou toda uma geração de mulheres, servindo de modelo para a imagem que elas queriam delas mesmas.

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Ao aparecimento desses rostos na tela – rostos jovens, maliciosos e sensuais –, somaram-se outros fatores cruciais para a construção de um modelo de beleza. Data dessa época o banimento de cena da mulher velha. Se até o século XIX matronas pesadas e vestidas de negro enfeitavam álbuns de família e retratos a óleo, nas salas de jantar das casas patrícias, no século XX, elas tendiam a desaparecer da vida pública.

Envelhecer começava a ser associado à perda de prestígio e ao afastamento do convívio social. Identificava-se gordura à velhice; era a emergência da lipofobia. Não se associava mais o redondo das formas – as “cheinhas” – à saúde, ao prazer, à pacífica prosperidade burguesa que lhes permitia comer muito, do bom e do melhor. A obesidade tornou-se critério determinante de feiura, representando o universo do vulgar, em oposição ao elegante, fino e raro. Esbelteza e juventude se sobrepunham: “É feio, é triste mesmo ver-se uma pessoa obesa, principalmente se se tratar de uma senhora; toca às vezes as raias da repugnância”, advertia a Revista Feminina em 1923. A gordura opunha-se aos novos tempos, que exigiam corpos ágeis e rápidos. A magreza tinha mesmo algo de libertário: leves, as mulheres moviam-se mais e mais rapidamente, cobriam-se menos, com vestidos cada vez mais curtos e estreitos, estavam nas ruas. O rosto rosado pelo ar livre, pela atividade, não se coadunava com o semblante amarelado das mulheres confinadas em casa.- Mary del Priore.

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Medusa, de Caravaggio. 

 

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