A santa mãezinha e a criança feliz

      Por Márcia Pinna Raspanti.

      Muito se tem falado sobre o lançamento do programa federal “Criança Feliz” que irá atender crianças de até três anos, cujas famílias são beneficiadas pelo Bolsa Família, e que terá R$ 285 milhões no Orçamento de 2017. Porém, o que mais chamou a atenção e gerou discussões foi o discurso da primeira-dama, Marcela Temer, “embaixadora” do programa. Vamos deixar claro que a vida pessoal de Marcela, seu casamento, suas escolhas pessoais e profissionais não nos interessam: o que queremos discutir aqui é a iniciativa em si e a imagem feminina “ideal” que o governo e mídia estão construindo em cima de sua figura.

      Temer já havia anunciado que a mulher estaria a frente do “Criança Feliz”, mas Marcela não havia se pronunciado sobre o fato até seu discurso de três minutos no lançamento do programa. Quando perguntado se a primeira-dama estaria qualificada para o cargo, o presidente respondeu que sim, pois “ela é mãe”. E esse foi o tom do pronunciamento da moça que falou a respeito do “instinto maternal” e sobre a responsabilidade das mulheres em educar as crianças. Isso em um tempo em que se destaca a importância da participação dos pais nessa difícil tarefa. Como uma mulher de baixa renda, que trabalha fora, passa horas no transporte público e tem outros filhos vai cuidar sozinha da sua prole?? Não é importante destacar o papel do homem na educação dos filhos? Penso que sim.

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     Com um visual singelo, quase infantil, Marcela afirmou que o “carinho” materno é a fundamental para que a criança desenvolva suas habilidades. Sem dúvida, mas as crianças necessitam de boa alimentação, assistência médica, lazer, moradia, creches, entre outras coisas básicas para um desenvolvimento adequado. Curiosamente, um tema feminino por natureza e importantíssimo, a amamentação, não foi sequer citado no discurso. Temer afirmou que outras “senhoras” seriam convidadas a se engajar nessa iniciativa, principalmente primeiras-damas e prefeitas. Nada de homens. E os prefeitos, vereadores e deputados? Não precisam também ser sensibilizados? O que ficou marcante na fala do casal Temer é que cuidar de crianças é assunto de mulher.

     A ênfase no lado maternal das mulheres não é recente.  “A comunhão entre o desejo institucional de domesticar a mulher no papel da mãe e o uso que as populações femininas fizeram desse projeto foram tão bem-sucedidos, que o estereótipo da santa-mãezinha provedora, piedosa, dedicada e assexuada se construiu no imaginário brasileiro no período colonial e não mais o abandonou. Quatrocentos anos depois do início do projeto de normatização, as santas-mãezinhas são personagens de novelas de televisão, são invocadas em para-choques de caminhão, fecundam o adagiário, as expressões cotidianas políticos, em discursos, referem-se às suas mães como ‘santas’”, afirma Mary del Priore, em “Ao Sul do Corpo”.

    A historiadora destaca que a maternidade extrapola, portanto, dados simplesmente biológicos: “ela possui um intenso conteúdo sociológico, antropológico e uma visível presença na mentalidade histórica. Repositório de práticas exclusivamente femininas – pois ainda se dá à luz tal como se fazia no século XVII, e o útero segue sendo o critério principal de saúde para o corpo feminino –, a maternidade acabou preservando, até hoje, formas e técnicas específicas”, explica. A maternidade sempre foi uma forma de dominação sobre o gênero feminino (não apenas isso, obviamente), de manter as mulheres confinadas no âmbito doméstico, deixando o espaço público (a política, a cultura, a vida social) para os homens.

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    No início do século XX, com as tentativas de emancipação feminina, a imprensa vai se apropriar desse discurso, bombardeando as mulheres com regras de comportamento e julgamentos morais. “A imagem da mãe-esposa-dona de casa como a principal e mais importante função da mulher correspondia àquilo que era pregado pela Igreja, ensinado por médicos e juristas, legitimado pelo Estado e divulgado pela imprensa”, afirmam Mariana Maluf e Maria Lúcia Mott, em “Recônditos do Mundo Feminino” (História da Vida Privada no Brasil 3).

     Por muito tempo, uma das poucas opções profissionais das mulheres “honestas” era cuidar de crianças, como preceptora e, já no século XX, como professora. Solteironas, moças casadoiras, mulheres que precisam reforçar o orçamento doméstico, viúvas podiam cuidar dos filhos dos outros, pois contavam com o “instinto maternal”. Já falei aqui no blog que a forma como a mídia trata Marcela Temer me lembra muito os chamados Anos Dourados. A imprensa dos anos 50 apresentava um modelo ideal de mulher: discreta, obediente ao marido, boa mãe, com boa aparência. Tudo aquilo que hoje é elogiado na primeira-dama.

      Seguindo o script da “mulher perfeita”, Marcela agora vai se dedicar também a cuidar dos filhos dos “menos afortunados”, com a ajuda de outras “senhoras”. Nada mais anos 50…Foi noticiado na mídia (os links estão abaixo) que o presidente irá usar a imagem da esposa para melhorar sua popularidade e suavizar a imagem do governo. Esse tipo de discurso sensibiliza (ainda) muitos brasileiros. Acredito que a linha adotada “bela, recata e dólar” deve continuar. Como isso vai impactar a nossa sociedade (e as mulheres especificamente) ainda não sabemos.

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    Quanto ao programa “Criança Feliz”, vamos esperar que se ajuste à realidade das famílias que serão atendidas e não seja apenas uma vitrine para exibir as qualidades da primeira-dama ou uma forma de melhorar a imagem do governo. Infelizmente, o lançamento do programa gerou mais fofocas e comentários maldosos ou elogios rasgados que discussões sobre as crianças que serão beneficiadas e a iniciativa em si. Espero que o discurso “emotivo” se transforme em ações efetivas para que as crianças possam receber os cuidados básicos para um crescimento saudável.

  • TEXTO de Márcia Pinna Raspanti.

marcela

Temer e a mulher, Marcela. UESLEI MARCELINO REUTERS.

LINKS:

Marcela Temer e a volta do ‘primeiro-damismo’ – El País

Marcela Temer lança projeto – O Globo

Governo adere ao ‘primeiro-damismo’ – Folha de S. Paulo

6 Comentários

  1. Marta Libralão De Araújo
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