A princesa Isabel e a Lei Áurea

 A assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, se deu durante a regência da princesa Isabel, enquanto seu pai, D. Pedro II, estava ausente do país para cuidar da saúde na Europa. A princesa tinha razões políticas e religiosas que a aproximaram do movimento abolicionista. Passado o entusiasmo inicial, entretanto, a resistência a um terceiro reinado, com Isabel como imperatriz, voltou. O império cairia pouco tempo depois, perdendo os seus últimos apoiadores – o senhores de escravos. Acompanhe a narrativa dos acontecimentos de Mary del Priore, em “O Castelo de Papel”.

Junto com a opinião pública, Isabel já estava convencida: “Deus me ajude e que a questão da emancipação dê breve o último passo que tanto desejo ver chegar! Há muito a fazer. Mas isto antes de tudo”, escreveu ao pai. Como de praxe, o Barão de Cotegipe (presidente do Conselho de Ministros) perguntou a Regente a quem devia chamar para substituí-lo. Tinha esperanças de indicar um sucessor. Mas ela não lhe deu tempo. Pediu que João Alfredo, conservador e senador por Pernambuco, que apoiava a causa abolicionista, tomasse seu lugar. A escolha foi interpretada como um sinal verde para a causa. Cauteloso, antes de aceitar o cargo, João Alfredo foi pedir a benção a Cotegipe que lhe prometeu: “conte com os meus amigos”.

11 de Março de 1888: o novo gabinete foi acolhido com manifestações de alegria em toda a parte. Do Conselho dos Ministros fazia parte Antônio Prado, na pasta dos negócios Estrangeiros. Até a província do Rio de Janeiro, reduto dos mais influentes de senhores de escravos, dobrou-se. Alguns senhores alforriavam os seus, seguindo o exemplo dos paulistas. Em Minas Gerais, libertações voluntárias se juntaram à iniciativa dos cativos que deixavam pacificamente as fazendas.

A 17 do mesmo mês, Gastão (o conde D’Eu) escrevia à França comentando que a principal tarefa do novo gabinete seria “de votar, ao longo do ano, a abolição definitiva”. Afinal, os escravos por si sós ou por alforrias, iam abandonando senzalas. Faltando apenas três semanas para a assinatura da Lei Áurea, ele escreveu à tia Francisca, externando sentimentos contraditórios em relação ao assunto:

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“Conta-se que, brevemente, será votada a abolição completa da escravidão, o que já é uma necessidade, pois quase ninguém a quer mais. E é de se esperar que a maior parte dos negros, apesar de libertos, continuem a trabalhar nas fazendas”.

Mas, abolição já? Segundo Gastão “só com medidas rigorosas e destinadas a satisfazer a lavoura, obrigando os libertos à residência fixa e a procurar ocupação”. Mas ele sabia também que isso seria difícil. Melhor “confiar na Providência que até hoje tem protegido o Brasil e na boa índole da gente”. Ninguém sabia o que ia acontecer menos ainda o novo ministro: haveria ou não indenização pelos libertos? A libertação seria imediata ou haveria um prazo, talvez dois anos? Afinal a colheita de café estava para começar no vale do Paraíba… E não faltava quem prognosticasse: “O que é a emancipação para o Brasil? É a Revolução!”.

Na Fala do Trono, proferida no dia 3 de maio, Isabel mencionou a “extinção do elemento servil pelo influxo do sentimento nacional […] aspiração aclamada por todas as classes […] para que o Brasil se desfaça da infeliz herança”. Aplausos e simpatia. Mas, não se falava em data. Porém magistratura, classes armadas, funcionalismo público, imprensa, mocidade das escolas, agricultores, todos se agitavam e cabalavam pela sorte dos cativos.

Em resposta à crescente pressão, almoçaram no palácio imperial, quatorze africanos fugidos de fazendas vizinhas em Petrópolis – anotou o abolicionista André Rebouças. E no mesmo diário, a 12 de maio, acrescentou: “Excedem a mais de mil os escravizados acolhidos a Petrópolis, hospedados pela Comissão Libertadora sob os auspícios de Isabel, a Redentora”. A comissão devia ter alguma relação com a Confederação Abolicionista. Quem a compunha? Pouco se sabe. Rebouças não esclarece e Gastão não a menciona nenhuma vez na abundante correspondência que mantém com a França.

Mal assumiu o governo, João Alfredo recebeu uma representação dos deputados de São Paulo: queriam abolição imediata, incondicional e sem cláusula de serviço. Nada de gradualismos para manter a quietação no país. Na abertura da nova sessão legislativa, o ministro da agricultura, Rodrigo Antonio da Silva, premido pelos paulistas apresentou um projeto de abolição incondicional. Nabuco exortou os parlamentares a esquecer as disputas partidárias diante da importância da questão. Importava conciliar liberais e conservadores contra o escravismo. Uma aliança, ainda que efêmera. Palmas dentro e fora da Câmara, cercada por cerca de cinco mil pessoas. O regime de urgência para a votação foi adotado. Os membros da casa votaram: 83 contra 9. Uma onda de entusiasmo garantiu sua assinatura em sete dias.

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Isabel contribuiu. Veio de Petrópolis num domingo, 13 de maio, a fim de transformar, com sua assinatura, o projeto em lei. Exultava: seria aquele um dos mais belos dias de sua vida, se não fosse saber estar o pai doente. Mas, Deus permitiria que D. Pedro voltasse “para tornar-se, como sempre, tão útil à nossa pátria”. A ele, escreveu dizendo-lhe da alegria de “ter trabalhado para ideia tão humanitária e grandiosa”, apesar das noites curtas e excitações de todo o gênero. Estava cansada – rezingava.

Na Corte, esperavam o casal de príncipes, mais de dez mil pessoas. Delírio na praça em frente ao paço imperial. Uma explosão de alegria sacudiu a multidão quando a princesa recebeu a legação para a assinatura. Vestida de branco pérola e rendas valencianas, ela assinou a lei com uma caneta cravejada de brilhantes. José do Patrocínio, ajoelhado, beijou-lhe as mãos e foi seguido por outros membros da Confederação Abolicionista. Nabuco discursou, enquanto parte do público dançava. “Tão bom como tão bom” era o grito de guerra dos emancipados, embriagados de liberdade. Isabel ganhou um buquê de camélias e violetas. Depois, foi para o balcão apoiada pelo antigo ministro Cotegipe. Ao perguntar-lhe o que achava do gesto, o velho político respondeu: “Redimiste, sim, Alteza, uma raça; mas perdeste vosso trono…”. Eram cerca de 15 horas.

O troco foi uma ovação. Eram as vozes dos zungús, dos quilombos, das senzalas, dos cafés e redações de jornais da Rua do Ouvidor, da boemia literária. De velhos e jovens, homens e mulheres de todas as classes e condições. A popularidade da família imperial bateu todas as expectativas. Anos mais tarde, o escritor Lima Barreto que tinha sete anos, lembraria das palmas, dos acenos com lenços e vivas. Em todo o império, comoção. “Aclamações populares”, no Maranhão. “Delírio”, no Recife. “Estrondosas manifestações de regozijo popular” em Fortaleza.

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Poetas declamavam em público versos que exaltavam o momento. Panfletos eram distribuídos entre a população: “Arcanjo da liberdade. Da pátria loura esperança. Mimosa flor de Bragança. Celeste núncio de amor […] vê que os corações humanos, têm todos a mesma cor”, cantava Artur Azevedo.  Nos versos de um, Isabel era “uma grande e santa mulher”. Outro celebrava “a era luminosa”. Outro ainda: “rasgou-se a folha negra”. E não faltava quem comemorasse, pedindo em rimas: “Deem-me ai um copo de cerveja”, bebida na moda que substituiu a cachaça. Vez por outra, ouviam-se gritos de “Viva a República”!

Sobre a data, Gastão diria que “o momento psicológico tinha chegado”. Que “a natureza impressionável das raças deste país dava lugar a um entusiasmo sem limites e tocante”. Segundo ele, o sucesso para a monarquia era colossal. Nela se reconhecia “o agente principal de transformação tão ardentemente reclamado”. Voltaram para casa por ruas atapetadas de flores. Em Petrópolis foram recebidos com lanternas chinesas, música, foguetes, um séquito de trinta ex-escravos e chuva. Todos direto para a igreja “rezar o mês de Maria”. Segundo um poético Rebouças, Deus teria visto tudo, “iluminando a cena com relâmpagos e derramando lágrimas de infinito júbilo”.  No dia seguinte, “um dia tranquilo”, receberam apenas mais “visitas do que de costume”. Para Gastão, tudo ia bem, “salvo as espoliações tão inevitavelmente impostas aos proprietários retardatários”.

Nos dias subsequentes, houve missa na igreja do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos e o secretário da irmandade, um maçom, expressou sua vontade: “que ao lado de santa Isabel de Portugal, figurasse santa Isabel, a brasileira”.

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Princesa Isabel (coleção Brasiliana); a princesa e a família.

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