A Linguagem do Corpo

Já se disse que na sociedade ocidental existem assuntos sobre os quais só falamos sussurrando. Em voz baixa. É de bom tom se usar metáforas quando se tratam de moléstias, mênstruos, deflorações e deformações. Por outro lado, quando os acadêmicos se lançam sobre as sociedades ditas arcaicas, nada os detém; a descrição da vida sexual do outro, considerado selvagem ou bárbaro, acompanha-se, normalmente, dos detalhes mais crus. Suas anomalias, desvios e enfermidades são minuciosamente anatomizados.

Essas entre várias razões levaram os historiadores a se interessar pela história do corpo: a excessiva discrição em relação ao tema, os debates da atualidade em torno de questões como a saúde perfeita, as terapias gênicas e ablações que prometem purificar geneticamente todos os seres defeituosos transportando, por meio da ciência, o homem de volta ao paraíso. Mas existe, também, uma profunda curiosidade pelo interior do corpo como retrato do universo mais fechado e misterioso que existe. Por isso mesmo, ele é submetido insistentemente às imagens, medidas, e a toda a matéria verbal destinada a representá-lo.

Os elementos para a história do imaginário sobre o corpo se encontram tanto na filosofia cristã, quanto no saber médico, que começa a se construir a partir do século XVII, em Portugal. Nesta época e em toda a Europa ocidental, a medicina e a Igreja uniam forças na luta para a constituição de um Estado centralizado, baseado na privatização do eu e na apropriação privada dos meios de produção.

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Nesse Estado, tanto o médico, que cuidava dos corpos, quanto o padre, que cuidava das almas, tinham acesso ao corpo. Apoiados na escolástica consideravam-no uma abominável roupagem da alma, um perigoso território, um lugar de tentação, votado à putrefação, destinado aos vermes. Para além destas imagens evocativas do pensamento cristão sobre o corpo, – imagens que habitam, aliás, constantes representações na Idade Moderna ibérica -, a noção cristã sobre a sexualidade e o uso dos prazeres se limitava à retomada de algumas categorias familiares saídas da Antigüidade. Compreendia-se o “exterior” – foris-, como invólucro capaz de manifestar ou trair o interior – intus –, a alma.

Mais além, a teologia insistia em reinterpretar a distinção corpo/alma através da dicotomia corpo mortal/ alma imortal. E havia uma dolorosa distinção entre esses dois pólos: um, positivo, centrado na encarnação do único corpo que importava aquele do Cristo, capaz de fazer pensar o físico como meio e lugar da salvação; e um pólo negativo que definia o corpo como matéria impura, vetor do pecado original, sinônimo de luxúria. – Mary del Priore

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“Vênus Adormecida”, de Giorgione (1508).

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