A infância do Visconde de Taunay

“É o mais bonito de todos”, murmuraram as senhoras que o viram cruzar o tapete vermelho, dos salões do Colégio Pedro II, na formatura da turma de 1858. Ao fundo, os acordes do Stabat Mater de Rossini. O “mais bonito” era Alfredo Maria Adriano d´Escragnolle Taunay, bacharel em letras e condecorado com medalha de 2. lugar pelo Imperador D. Pedro II, amigo e ex-pupilo de seu pai, Félix Émile Taunay. O jovem tinha 15 anos, cachos louros e olhos azuis quando recebeu das mãos do soberano o livro dourado e a coroa de papel pintado, a encalistra, na terminologia estudantil.

Originários do Poitou e da Normandia, os Taunay eram família conhecida nas rodas da Corte. O avô, Nicolas Taunay veio para o Brasil, em 1816, na chamada “Missão Francesa”. Junto com outros artistas, migrou temeroso da repressão que a Restauração pudesse provocar depois da queda de Napoleão Bonaparte, em cujo círculo trabalhava. Foram vítimas das vicissitudes que dispersaram franceses “pelos quatro cantos do mundo”. Em 1824, três anos depois do retorno do avô à França, seu pai se tornou professor de paisagem na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Assumiu a direção da mesma em 1834 e manteve o cargo até 1851. Ai empreendeu reformas enquanto pintava disputados quadros e dirigia projetos de urbanização. Retratos de família revelam os traços finos, rostos altivos e o colorido europeu dos seus membros.

Sua mãe, Gabrielle d´Escragnolle, filha do conde e da condessa d´Escragnolle era prima do então ministro da Guerra, Henrique Pedro Carlos de Beaurepaire, nobre, militar e político, cujo pai foi marechal-de-campo do exército francês perseguido por Bonaparte, tendo-se refugiado em Portugal e acompanhado D. João VI quando da vinda da Corte para o Brasil. Presentes nas hostes da Independência, os Beaurepaire serviram D. Pedro I, lutando na Bahia sob o comando do mercenário francês Pierre Labatut.

Como todas as crianças da época, Alfredo nasceu em casa, à rua do Rezende, n.87, às 13 horas do dia 22 de fevereiro de 1843, na capital, Rio de Janeiro. Veio ao mundo pelas mãos de uma “aparadeira”. A cidade, então, começava a despertar do torpor em que vivia mergulhada. Nesse mesmo ano, chegou ao Brasil D. Teresa Cristina de Bourbon para casar-se com D. Pedro II, se tornando assim a terceira imperatriz do Brasil. As plantações de café prosperavam no vale do Paraíba. Jornais discutiam se havia ou não uma cultura genuinamente brasileira e a ópera italiana invadia os sobrados, suas aberturas marteladas por sinhás nos pianos recém-importados. A capital possuía cerca de 206 mil habitantes, dos quais 79 mil (38%) eram africanos escravos ou livres. Discutia-se, como o fazia Evaristo da Veiga, a “africanização” do Brasil.

Alfredo tinha o seu cativo: Thomaz. “O bom Thomaz tão fiel, humilde e dedicadíssimo modesto companheiro de juventude”, gostava de lembrar. Era Thomas que lhe repetia todas as noites, deitado aos pés da cama do ioiô, o Louvado seja, valendo-lhe uma berceuse de autoria do menino: “Thomas m´ eveille…Thomas, m´endort”. O escravo também conheceu as glórias da ribalta numa das peças escritas por Alfredo ainda pequeno. Nela, fazia o papel do galã enamorada de certa Dona Panchicha: “Si perder Dona Panchicha, morrelei de desgosto”, repetia em português arrevesado.

A naturalidade das relações escravistas o deixou registrar as bofetadas ministradas pelo pai ao escravo Bruno, cuja carroça ficou presa num atoleiro. Ou a história do Diogo que saíra, num domingo, de calças bem engomadas sendo obrigado a ajoelhar-se num lamaçal pelo próprio imperador D. Pedro I, que não se contentou em vê-lo encolhido a sua passagem: “Imagine-se como todos riam, enquanto o pobre do Diogo se enterrava meio corpo no lodo, para dar cumprimento às ordens imperiais” – anotou, imune à exploração do escravismo.

A vida econômica era extremamente atrasada e as estradas intransitáveis. Não existiam indústrias de manufaturados. O capital disponível estava nas mãos de mercadores de grosso trato que o concentrava na exportação da produção das plantations, na importação de escravos, na manutenção de monopólios de alimentos e na renda de aluguéis urbanos. A estrutura social era rigidamente estratificada. Origens de classe e cor determinavam a posição social. O serviço público era um refúgio para os herdeiros que tinham jogado fora suas fortunas, ou que migravam do campo para a cidade: da Casa Grande para o sobrado, como bem demonstrou Gilberto Freyre.

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Ainda pequeno, Alfredo teria que enfrentar as epidemias que se abatiam sobre a cidade, de fevereiro a março. A febre amarela, endêmica a partir de 1850. Surtos de cólera também fustigaram o Império nos seus primeiros anos de vida. O ambiente insalubre levou a família imperial, a tornar regulares as viagens à Petrópolis. Os Taunay, por sua vez, se refugiavam na fazenda, em Cabussu, Engenho Novo, pertencente ao “tonton” Teodoro de Beaurepaire: “risonha e amena paisagem, toda de capinzais bem verdes, cortados por bonitas curvas no caminho areento”, registrou Alfredo em memórias. Lá, ele se empanturrava de pitombas e engaiolava canários. Ia também veranear em Jurujuba: praia pontilhada de pés de araçá e goiabas onde tomava banhos de mar e pescava baiacus com os filhos dos pescadores. Em 1852, perdeu uma irmã, Izabel, seu primeiro contato com a morte. Os cuidados com a saúde do menino eram permanentes, daí as lições de ginástica no Arsenal de Guerra, para combater sua “magreza e debilidade constitucional”.

Não se poupava tostão para educá-lo. Aliás, nessa época, em matéria de instrução, os pais não mediam sacrifícios ao tratar dos filhos. Era “tudo pelo Alfredo”. A linguagem tinha que ser corrente evitando-se a “geringonça luso-africana de muita gente nossa”, como se queixava, então, o padre Lopes Gama. A educação era prerrogativa dos que a tinham assegurado pelo nascimento ou posição social. Uma minoria sabia ler e escrever, as escolas secundárias eram raras e só havia uma instituição modelo: o colégio Pedro II, para onde foi Alfredo antes de completar 12 anos. Para prepará-lo, contrataram-se professores particulares e multiplicaram-se as horas de aulas. “Eu não descansava nos estudos, entretanto, sobremaneira inclinado à vadiação e a correr, quando tinha qualquer folgazinha”, registrou. Foi aprovado com distinção em todas as matérias – latim, inglês, alemão, grego, francês, princípios de história natural, geografia “e não sei mais o quê”, como registrou em suas memórias.

Vale lembrar que Alfredo era o resultado de uma formação híbrida, europeia e brasileira.  “Raras para o tempo foram também as condições como as que encontrou no lar franco-brasileiro, na tradição de uma parentela de artistas e escritores”, explicou Antônio Cândido”. Em casa falava-se francês; os tios eram os “tonton”; as leituras correntes eram de novelas como La recherche de l´inconnue ou as peças de Moliére. O pai recitava de memória trechos de Racine e Corneille e suas recriminações frente às dificuldades de aprendizado, também eram em francês: “Tu n´es qu´un imbecile!”.

A família materna ligada ao consulado francês recebia notícias constantes do país que seguia como exemplo entre políticos e intelectuais. A intimidade com o Hexágono, a importação de noções como cientificismo, evolucionismo, progressismo, liberalismo e mais tarde, positivismo, faziam parte do cotidiano de homens cultos como os Taunay e os Beaurepaire. Além de entranhados na família, os francesismos se encarnavam nos livros vendidos nas recém instaladas livrarias Garnier ou Laemmert. Os clássicos juvenis franceses eram leitura obrigatória. Alguns autores lhe trouxeram problemas, segundo o jornalista Ubiratan Machado:

“Na década de 1850, havia outra loja de livros usados muito popular na cidade, sobretudo entre os estudantes. O proprietário era um sujeito meio amalucado […] Em certa ocasião, Taunay foi lá procurar um compêndio de um tal de Salacroux. Assim que ouviu o nome, o livreiro entrou em estado de fúria e, com um empurrão, atirou o estudante de 12 anos, no meio da rua. Algum tempo depois, vendo o rapazinho passar diante da loja, arremessou-lhe um paralelepípedo entre as pernas”. Em resposta, foi chamado de “caga-sebo”.

Mas se por um lado, a cultura francesa era considerada o paradigma de excelência, havia certo clima de rejeição aos “estrangeiros” não naturalizados. Seu pai costumava dizer: “Ao estrangeiro os brasileiros têm verdadeira aversão”. Tinha razão para se queixar. Em 1851, Felix fora jubilado da Academia de Belas Artes por ser não naturalizado. Ficou doente de tristeza. Alfredo chegou a pedir-lhe para abrasileirar o nome: por que não Tonay, afinal, Sodré derivara de Saudray? Resposta dura: “trata de impor teu nome ao país tal qual é”. Mais tarde, numa dívida com a infância, o problema da imigração apaixonaria Alfredo.

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A vida escolar teve início a 3 de fevereiro de 1855. “A primeira parte de sua existência” transcorreu sem maiores problemas entre anedotas personificadas pelos mestres, travessuras dos colegas e muitas risadas. “Rimo-nos a valer” é observação bem-humorada que pontua muitas das recordações do colégio. Sobretudo, as de 1856, ano em que todos os alunos foram reprovados por indisciplina e traquinagens. Mas além das risadas, estudos acrescidos à cultura doméstica, o faziam um aluno de alto nível. Sua atuação era notada pelo imperador D. Pedro II que impressionado, comentava-a com Félix, seu velho amigo: “Sua Majestade mostrava-se surpreso com o aprumo de Alfredo”. A amizade passaria de pai para filho. Felix ia ao Paço Imperial todas as terças e sextas-feiras, levando jornais ou traduções de poetas gregos para o Imperador que o tratava com grande intimidade. Essa “inexcedível estima e consideração” entre os dois homens, em que se misturavam os contornos do público e do privado, distinguiria Alfredo, para sempre.

No ano de 1858 formou-se. Os primeiros arroubos literários circularam num “jornaleco publicado por um aluno do quinto ano […] O Tamoio. Nele se estampou pela primeira vez em letra de forma, uma composição minha”, anotou nas Memórias. Depois foi a decisão: ser padre ou médico? Nem um, nem outro. Militar, responderam em coro, os pais. “E o estudo das matemáticas? Não tenho jeito algum”, retrucava Alfredo. Mas havia o peso da tradição familiar e, em 1859, Alfredo estava matriculado no edifício do largo de São Francisco de Paulo da Escola Militar. Ao mesmo tempo, lecionava “explicações particulares de várias matérias” para ganhar uns trocados. Os tempos eram bicudos e o pai não tinha boa situação financeira. Foi contratado por escolas privadas, nas ruas do Sabão ou do Núncio ou tinha “explicandos” – jovens que tinham que ser preparados para exames de latim ou outra matéria: “desde esse tempo me habituei ao trabalho a dar explicações e a ganhar com que me calçar e vestir o que fazia com certa faceirice e certo esmero – gravou.

A 1º. janeiro de 1861, “dia límpido de céu azul”, Alfredo jurou a bandeira no forte São João e assentou praça como soldado do 4º. Batalhão de Artilharia a pé. No fundo, confessou, “não se sentia com propensão para essa penosa profissão”. “Metido na fardinha nova de alferes aluno” – como se descrevia – teve aulas com excelentes professores: Capanema, Saldanha da Gama, Freire Alemão e por curto espaço de tempo, com o futuro Visconde de Rio Branco. Os exercícios práticos eram realizados na Fábrica de Pólvora da Estrela, na raiz da serra de Petrópolis, sob o olhar atento do imperador D. Pedro II. Foram anos de aplicados estudos em que Alfredo se distinguia pela dedicação, mas se destacava também pelo humor e as situações cômicas que registrou. Como por exemplo, a do professor cuja fúria era controlada pela cor das calças, branca ou azul: “- O homem está de hemorróidas, cuidado!”. Era a senha para que os jovens se comportassem.

A 8 de abril de 1862 recebeu das mãos do ministro da Guerra, Luís Alves de Lima e Silva, futuro duque de Caxias, o título de alferes. A 16 de dezembro, o de bacharel em Ciências Matemáticas e Físicas pela Escola Central do Império do Brasil. Mas a vida não era só estudo e disciplina. No ano seguinte, registrava-se a presença do belo Alfredo tanto no Alcazar, na Rua da Vala quanto no Paraíso, na Rua dos Inválidos, territórios de caça das conhecidas “demi-mondaines”, muitas delas estrangeiras. O Rio de Janeiro, como outras cidades portuárias importantes, multiplicava bordéis e cabarés. As francesas, sucedidas pelas polacas, começam a chegar com a inauguração do Alcazar Francês, em 1862. Elas traziam na bagagem a palavra “trottoir”. Na época estando em jogo à identificação com o mundo europeu, dormir com uma francesa era como dormir com a própria França e ainda se sentir o mais legítimo dos franceses. As francesas eram renomadas por introduzir homens maduros e adolescente como Alfredo às sutilezas do amor, revelando-lhes delicadezas eróticas.

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A partir de 1864, Alfredo encaminhou-se para o curso de Engenharia Militar. Por já possuir um bacharelado em letras, foi tratado com algumas regalias: tinha quarto independente e o escravo Gregório era autorizado a trazer-lhe guloseimas caseiras: costeletas de porco e de sobremesa, compotas. Meses depois, por carta patente assinada pelo Imperador, Alfredo era promovido a segundo tenente de artilharia com aprovação plena em todas as matérias do curso, e grau 10 na classificação geral.

Ao final do ano, o troar dos primeiros canhões nas fronteiras do Prata se faziam ouvir na capital. “Em todo o Brasil não se falava senão em guerra”. O Paraguai invadiu o sul do Mato Grosso em dezembro de 1864. No início do ano seguinte, atacou a província Argentina de Corrientes, com o objetivo de atingir o Uruguai. Os governos dos três países agredidos reuniram-se em Buenos Aires no dia 1. de maio e firmaram o acordo da Tríplice Aliança, a fim de conter os ímpetos expansionistas de Solano Lopez.

Os alunos da Escola Militar recebiam ordens para se reunir aos corpos de batalhões a que pertenciam. D. Pedro II, segundo Alfredo, parecia engajado num programa inflexível: defender a pátria. A instituição se esvaziava e os companheiros partiam para o front. A família Taunay se acabrunhava.

Aqui valem algumas palavras sobre o ambiente familiar. Alfredo era também o produto de sua casa. Um “sweet home”, como estava na moda, na Europa e, sobretudo, na França que copiava a Inglaterra. Pai e mãe educadíssimos. Ele, Félix Antoine, dono de seu trabalho e chefe de família, senhor de uma autoridade que exercia de maneira cristã. Ela, Gabrielle Hermínie, dona de casa capaz de dirigir a casa com brandura e rigor, excelente mãe e esposa. Ele cuidando da vida pública; ela, o centro do lar e da família. Ambos cumpriam os seus papéis com competência e eram as garantias da moralidade natural. Os filhos, por seu turno, ocupavam o centro da família. Eram objetos de todo o tipo de investimento: afetivo, econômico, educativo e existencial. Como herdeiro, caso de Alfredo, o filho era o futuro da família, sua imagem sonhada e projetada, sua forma de lutar contra o tempo e a morte. Não poucas vezes em suas Memórias, o jovem registrou o devotamento dos pais: “Impossível gozar e merecer mais dedicação e amor filial, do que experimentei em toda a minha existência”.

No momento em que, nos longínquos pampas, a guerra ameaçava roubar-lhes o primogênito, Felix e Gabrielle não pouparam esforços para protegê-lo. Alfredo acabara de completar 22 anos quando teve notícia de que uma expedição se organizava para atacar por terra a República do Paraguai. Tal ataque se daria pelas fronteiras, entrando uma coluna por Corrientes e outra, por Miranda, em Mato Grosso. Os rumores eram de que a viagem pelo interior do Brasil seria tão longa, que ao chegar à zona de guerra, esta estaria, com certeza, terminada. Felix não teve dúvidas. Tomou o chapéu e foi a São Cristóvão pedir a intervenção do imperador. A nomeação saiu e Alfredo foi designado “ajudante da comissão de engenheiros”. Alegria do jovem e tristeza em casa: “Portava-se minha mãe com muita coragem, aparentando toda a serenidade, embora claramente se visse o esforço que fazia sobre si mesma”.

No dia 31 de março de 1865, Alfredo embarcou no vapor Santa Maria, vindo de Santos. No convés, o imperador e seus dois jovens genros: o conde d´Eu e o duque de Saxe. A banda de música do Corpo policial tocava trechos dolentes de La Traviata. No cais, Félix escondia o rosto num lenço vermelho: explosão de lágrimas de pai e filho. – Texto de Mary del Priore.

vtaunay

O jovem Taunay, que mais tarde publicaria o romance “Inocência”.

 

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