“A grande maioria das brasileiras é horrivelmente machista”

Confira a entrevista da historiadora e escritora Mary del Priore para os Cadernos de Gênero e Tecnologia, da UTFPR:

 

CGT – As mudanças sociais e o reconhecimento dos direitos referentes às mulheres não são identificados pela maioria como fruto das lutas feministas para garantir leis e políticas públicas voltadas à promoção da equidade de gêneros. A que se deve essa falta de visibilidade e de valorização do movimento feminista?

Mary Del Priore – De fato, temos uma longa luta por melhores condições de vida da mulher brasileira, que raramente é lembrada. Nísia Floresta, na primeira metade do século XIX já militava em favor do ensino e da escolarização da mulher, para que esta pudesse sobreviver sem ver no casamento a única saída para sua vida. Na segunda metade do século, inúmeras escritoras começaram a colaborar para jornais e os assuntos mais focados eram a Abolição e a República. Depois, vieram as sufragistas, as políticas que lutaram contra a ditadura de Getúlio e do governo militar, o lobby do Batom quando da Constituinte, os Clubes de Mães e as associações ligadas às igrejas, nos anos 80, enfim, temos um passado que raramente é lembrado ou comemorado.E que ao mesmo tempo revela que já fomos melhores cidadãs participativas nos destinos do país. Razões para que a política seja uma questão de somenos importância, hoje? Penso que a entrada massiva de mulheres no mercado de trabalho, a partir do final dos anos 80, bem como o controle da natalidade assegurado pela democratização da pílula, deram novas agendas às brasileiras. Agora, não mais agendas coletivas, mas individuais. Nisso, as mulheres refletiram as preocupações e a mudança dos tempos. O final do século XX é o momento do aparecimento do individualismo como filosofia de vida. Junto com ele, a obsessão da busca da felicidade, da independência, enfim, do prazer e do hedonismo. Milhares de obras publicadas na época refletem tais objetivos. Passamos, portanto, de um mundo onde vigiam as relações horizontais, onde as sociabilidades giravam em torno da família, da igreja e do clube, para outro, onde as demandas dizem respeito ao sucesso individual a todo preço. A mulher passou a ser cobrada para tornar-se a melhor profissional, a melhor mãe, dona de casa, amante, enfim. Os papéis femininos atomizados passaram a exigir cotas de esforço pessoal tremendo. Sem tempo para o coletivo ou o plural. Resultados? O IBGE vem revelando que aumenta o número de lares dirigidos por mulheres e que um processo de feminização tomou inúmeros campos de trabalho: na Comunicação, no Direito, nas Universidades, etc. Ora, deste ponto de vista, as mulheres conseguiram liberdade e trabalho. É possível que um dos resultados desta caminhada vá resultar numa tomada de consciência, sobretudo por parte de mulheres educadas e formadas, preocupadas com um futuro melhor para seus filhos e netos. Cobrar melhores condições de saúde, melhores escolas, um cenário positivo para o envelhecimento da população, menos violência, cidades mais saudáveis, enfim, tudo isso poderá ser bandeira para uma participação menos individualista e mais humana e solidária do nosso sexo.

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CGT – Até a década de 1980 temas referentes ao trabalho feminino, seus saberes, sua sexualidade, sua participação política e econômica, estavam à margem dos estudos históricos. Desde então, os relatos históricos sofreram grandes transformações, um dos reflexos dessa renovação foi a inclusão de grupos sociais que até então permaneciam invisíveis. Em sua opinião, essa concepção historiográfica conseguiu transpor os limites acadêmicos e se transformar em saber histórico presente nas propostas curriculares, nos livros didáticos e nas práticas pedagógicas?

MDP – Vivi plenamente a preocupação das universidades nos anos 80, em criar centros de estudos nos moldes americanos: “gender studies”. Eles resultaram em inúmeros trabalhos e teses excelentes, na revelação de grandes talentos na área de Ciências Humanas, na preocupação de perceber o gênero como uma construção social e não um determinismo biológico,
no resgate de documentos inéditos sobre o passado de nossas avós, enfim, inúmeras preocupações que espelhavam as mudanças na sociedade (pílula e trabalho). Os resultados deixaram a torre de marfim das universidades? Penso que não. Difi-culdade de publicação, atomismo dos movimentos feministas, lutas internas de poder dentro da própria universidade resultaram na quase invisibilidade deste imenso esforço feito por tantos e tantas de nós. Por outro lado, podemos imaginar que nossas contemporâneas, absorvidas pelo mercado de trabalho, pelas dificuldades de sobrevivência e pelos problemas criados pelo excesso de individualismo também não estivessem interessadas no que se fazia em termos teóricos.

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CGT – Percebemos atualmente no Brasil um incremento na procura por livros que contam a história do nosso país, sobretudo no que se refere ao período monárquico. A que se atribui esse crescente interesse dos leitores pelo tema?

MDP – Penso que, como em muitos outros lugares do mundo, o interesse por história sempre tenha existido. Faltavam, sim, obras de divulgação e difusão de informações escritas com o objetivo de atingir os que os historiadores franceses denominam “o maior número”. Afinal, a história é um romance que aconteceu! Colocá-la ao alcance de todos, instruindo e divertindo ao mesmo tempo, deve ser um dos objetivos dos historiadores jornalistas e outros profissionais que se interessem em fazê-lo. Sem preconceitos.

CGT – A senhora, como professora universitária e historiadora, percebeu que as questões de gênero, quando abordadas de forma romanceada, despertam mais o interesse e auxiliam na conscientização da luta para a diminuição/eliminação dos preconceitos contra as mulheres?

MDP – Não creio que as personagens femininas sobre as quais trabalhei (a Condessa de Barral, mulher à frente de seu tempo, a imperatriz Leopoldina ou Domitila) apontem os caminhos para uma conscientização de gênero. Elas nos permitem, sim, descobrir personagens de carne e osso com desa os, dores, alegrias muito semelhantes às nossas. É isso que as aproxima de nós. E que, em consequência, nos permitem entender o passado e a história como um lento processo feito de muitas rupturas, mas, sobretudo, de muitas permanências. E essas, mormente no campo das representações: a esposa, a mãe, a puta. Os papéis femininos foram solidamente construídos no passado, mas eles foram também muito mais complexos do que podemos imaginar. No passado também as mulheres souberam reagir, infringir, romper e construir. Quanto mais estudo – agora estou escrevendo sobre a princesa Isabel – mais dou-me conta que cada caso é um caso. As singularidades são mais fortes do que as linhas gerais que possamos traçar sobre o “gênero”.

CGT- Em sua opinião, a universidade como espaço dedicado aos estudos acadêmicos tem contribuído com especial atenção na sensibilização da sociedade em relação às mudanças e avanços nas questões de Gênero, através de Grupos e Núcleos específicos criados para tal fim, ou permanece como instituição “intramuros”?

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MDP- Acho que a universidade vem contribuindo pouco. Não porque assim o deseje. Mas porque deixou de ser o único avalista de inúmeras questões, matérias ou posições. Numa sociedade da comunicação, a opinião pública tem muito a dizer. É ela que julga o certo e o errado, o bom e o ruim. Excelentes comunicadoras de TV podem fazer mais contra a violência contra a mulher, a pedofilia ou outro problema qualquer do que a melhor tese defendida na melhor instituição de ensino. Os grupos e núcleos específicos tendem a verticalizar seus estudos, realizando o que já se denominou como “história do pequeno jardim”. Ou seja, multiplicam-se pesquisas, e falta síntese. E uma síntese que possa ser transmitida de forma fácil e que ajude a reagir e a pensar. Não esqueçamos que vivemos num país pobre e onde a educação deixa muito, muitíssimo a desejar, sobretudo entre mulheres carentes.

CGT – Tendo em vista seu conhecimento histórico sobre as mulheres no Brasil, a senhora poderia nos dar uma perspectiva das mudanças comportamentais que estão ocorrendo entre as mulheres brasileiras, levando em consideração a diversidade cultural de nosso país?

MDP- Esse é um vasto problema, pois cada região do Brasil possui sua especificidade. O que há em comum é o machismo da mulher brasileira. Esse é o grande problema a enfrentar de Norte a Sul, Leste a Oeste. Na vida privada, a grande maioria de brasileiras de todas as classes sociais é horrivelmente machista: não deixa os filhos lavarem louça ou o marido fazer a cama. Adora ser chamada de tudo o que for comestível, tipo “gostosa” ou “docinho”. Mulher inteligente, para elas é “sapata”. Sonham ser como a mulher-fruta e toleram na televisão todo tipo de vulgaridade que inferiorize suas irmãs. Além de machistas, a domicílio, elas são homofóbicas e racistas. É, portanto contra esse machismo caseiro, disfarçado e envergonhado que temos que
lutar. Essa é a mudança que temos que fazer.

Procuro dar minha contribuição com modéstia. Afinal, sabemos que “tudo passa”. O mais importante é a disponibilidade de escuta e a humildade em reconhecer erros, dificuldades e limites. É importante reconfigurar paradigmas femininos no Brasil? Sem dúvida. Estou sempre disposta a contribuir de todas as maneiras ao meu alcance para que isso aconteça. Afinal, ser historiador nada mais é do que ser “um profissional do entusiasmo”!

mary1

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