A “febre” dos esportes

              Na Inglaterra, França e Estados Unidos, os sports que se organizaram no decorrer do século XIX tinham relação direta com o crescimento das cidades, o desenvolvimento de uma cultura urbana e as preocupações com a saúde, a higiene e o corpo. Aqui não foi diferente e desde seu aparecimento, na Belle Époque, as modalidades esportivas se organizaram – caso do turfe e do remo – ou se consolidaram – caso do ciclismo e do atletismo – com sucesso, enquanto os banhos de mar e o jogo do bicho também eram considerados esporte. A presença de imigrantes, notadamente os ingleses, foi decisiva para a difusão da prática esportiva, notadamente entre as elites e classes médias. Nas primeiras décadas do século XX, as modalidades que envolviam apostas como a rinha de galo ou as arenas de touradas, ou ainda, as que incluíam jogos de azar, ainda que praticadas às escondidas, passaram a ser perseguidas como “bárbaras”. Coisa do passado! “Civilizadas” seriam outras modalidades que chegavam da Europa!

             A historiadora Monica Schpun explica que o esporte foi também a expressão privilegiada de um imaginário nacional, típico do período: ele permitia a exibição das qualidades de uma juventude plena do desejo de vencer, e consequentemente, promovia a imagem de um país jovem e vitorioso. O espetáculo dos esportes, e mais particularmente do futebol, oferecia a possibilidade de laços coletivos muito fortes. Quanto aos gêneros, a prática esportiva tocava mais aos homens do que as mulheres. Esportistas, os sportmen, ou torcedores, eles acompanhavam mais eventos, ocupavam mais frequentemente o espaço público, vivenciavam mais as emoções coletivas e identificavam-se com as representações projetadas da “essência masculina”. Para mulheres, o esporte era a possibilidade de desenvolver a beleza das formas, a graça dos movimentos e gestos, uma cultural corporal que falasse, enfim, da “essência feminina”. E graças a ele, as coisas mudaram para valer.

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O corpo ia ficando mais à vontade com a moda dos sports e, sobretudo, da natação. Não se economizavam elegâncias esportivas de beira-mar. Os homens de camisa listrada e de calças até os tornozelos; senhoras e moças, de grossas baetas azuis que as cobria do pescoço ao tornozelo. Nos banhos de rio, era comum nadar desnudo e havia um ritual intitulado “passamento da festa”, que consistia em nadar pelado depois de festas, pastoris, danças e teatro, nos subúrbios elegantes à beira dos rios como o Monteiro, Caxangá e Apipucos, em Recife. Nos banhos de mar, a presença feminina mexia com a cabeça dos homens. Era comum, nas casas de banho, encontrar cartazes com os seguintes dizeres: ‘É expressamente proibido fazer furos nestas cabines a verruma; os encontrados nesta prática devendo ser entregues à ação da polícia”.  E nos jornais, observações deste tipo: “curioso ver uma moça, quando é bem acabada, entrar e sair do mar […] quando sai, e aí está o busilis, a roupa adere ao corpo […] se nota muito a cintura bem feita, muito seio bem contornado”. Já nas competições de remo, eram os homens que exibiam seus músculos e coragem de afrontar as águas do mar ou de rios. O encontro dos sexos em ocasiões esportivas, era sem dúvida, signo de mudança nas relações sociais.

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Multiplicavam-se os ginásios, os professores de ginástica, os manuais de medicina que chamavam atenção para as vantagens físicas e morais dos exercícios. As idéias de teóricos importantes como Sabbathier, Amoros, Tissot ou Pestalozzi  corriam o mundo. Uma nova atenção voltada à análise dos músculos e das articulações graduava os exercícios, racionalizando e programando seu aprendizado. Não se desperdiçava mais força na desordem de gesticulações livres. Os novos métodos de ginástica investiam em potencializar as forças físicas, distanciando-se do maneirismo aristocrático da equitação ou do esgrima, ou da brutalidade dos jogos populares.

Mulheres começaram a pedalar ou a jogar tênis, voga importada da Europa. Não faltou quem achasse a novidade, imoral, uma degenerescência e até mesmo, pecado. Perseguia-se tudo o que pudesse macular o papel de mãe dedicada exclusivamente ao lar. Era como se as mulheres estivessem se apropriando de exercícios musculares próprios à atividade masculina. Algumas vozes, todavia, se levantaram contra a satanização da mulher esportiva. Médicos e higienistas faziam a ligação entre histeria e melancolia – as grandes vilãs do final do século – e a falta de exercícios físicos. Confinadas em casa, diziam, as mulheres só podiam fenecer, estiolar, murchar. Era preciso oxigenar as carnes e alegrar-se graças ao equilíbrio saudável do organismo. O esporte seria mesmo uma forma de combater os adultérios incentivados pelo romantismo. Afinal, encerradas ou aprisionadas, só restava às mulheres a sonhar com amores impossíveis ou tentar seduzir o melhor amigo do marido.

  • Texto de Mary del Priore.
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Competição de remo no Tietê, 1903.

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