A família escrava: trabalho e obediência

Como eram as famílias de escravos? Para conhecê-las,  é preciso, distinguir se eram escravos do campo – aqueles de “eito”, ou seja, que trabalhavam na lavoura – ou se eram “negros de ganho”, aqueles que trabalhavam nas cidades.

Os negros de eito:

A época de colheita ou de moagem da cana servia para que homens e mulheres se encontrassem . De maneira geral, nas grandes fazendas, havia mais homens do que mulheres nas senzalas. A escolha de uma mulher muitas vezes causava disputas violentas entre os homens: brigas de faca, ameaças e até mortes.

Os escravos preferiam unir-se em casamento ou concubinatos com companheiros da mesma origem étnica. Chama-se a este fenômeno endogamia. Escravos de origem nagô, casavam-se com nagô; os de origem haussá, com haussá, os cabinda com cabinda e assim por diante. Em São Paulo, por exemplo, 25% dos casamentos realizados no século XVIII o foram entre africanos, 34% entre crioulos e 41% entre africanos e crioulos.

Essa escolha, ditada por afinidades culturais e religiosas, permitia ao casal organizar seu mundo com os mesmos hábitos e tradições da sua região de origem na África. O viajante francês Auguste Saint-Hilaire, de passagem pelo Brasil  em 1816, registrou o seguinte depoimento de um escravo africano, residente em Minas Gerais:

“…vou me casar dentro de pouco tempo; quando se fica assim, sempre só, o coração não vive satisfeito. Meu senhor  me ofereceu primeiro uma crioula, mas não a quero mais; as crioulas desprezam os negros da costa. Vou me casar com outra mulher  que minha senhora acaba de comprar; essa é da minha terra e fala a minha língua

Alguns casais uniam-se através de casamentos coletivos organizados por seus senhores. Em São Paulo, 96% dos escravos casaram-se, durante o século XVIII desta maneira. Outros viviam juntos e tinham filhos, formando uma família. A situação desses negros ficava dramática quando, por alguma razão, o senhor resolvia vender um dos cônjuges. Se o casal era feliz, o que ficava muitas vezes acabava fugindo para acompanhar o companheiro. Havia, também, senhores de bom coração que, ao vender um dos dois, – em geral o homem, – dava liberdade ao outro, para que pudesse acompanhar o parceiro. Foi esse o caso de Quitéria, escrava de uma certa D. Ana Maria Francisca, em Campos, no Rio de Janeiro. Vivendo longe de seu companheiro, Quitéria viu-se ameaçada de venda pelo marido de D. Ana. Esta, então, “pelo grande amor que tinha a escrava, e em razão dos bons serviços que havia recebido, sem constrangimento de pessoa alguma lhe deu liberdade pelo amor de Deus”.

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Havia, também, senhores que sem qualquer respeito pela vontade de seus escravos, ordenavam: “Tu, fulano, a seu tempo, casarás com fulana”. Cumpriam, assim, a obrigação que tinham com a Igreja, garantindo, ao mesmo tempo, que os filhos desta união fossem seus escravos como os pais.

Na maior parte das vezes os escravos dormiam separados das escravas. Alguns senhores, atentos às necessidades dos casais reservavam para eles um espaço à parte nas senzalas e até construíam pequenas casinhas. Esses casais, como os demais escravos, trabalhavam para os seus senhores o dia inteiro. Nos fins de semana podiam descansar ou trabalhar para si próprios. Nas fazendas costumava haver um pedaço de terra que lhes era entregue, onde podiam cultivar alimentos e vender o excedente.

Até sete anos, os filhos de escravos ajudavam os pais fazendo pequenos serviços à volta da senzala ou da casa em que moravam: catavam ervas daninhas que cresciam na plantação, semeavam ou colhiam frutas ou se possuíam algum animal de estimação cuidavam dele. Dentro de casa, auxiliavam na cozinha e atendiam às ordens e desejos de seus donos: levavam recados, traziam copos d’água, transportavam objetos miúdos.  Mais tarde eram obrigados a trabalhar para o senhor de engenho.

O escravo na cidade:

Nas cidades, as uniões entre homens e mulheres escravos, ou entre escravos (as) e alforriados (as) ou livres, também vão ser correntes. Aí também prevalecia o padrão endogâmico de casamento do qual falamos. A família escrava apoiava-se numa forma de solidariedade muito forte: a espiritual . Escolhendo para padrinhos ou madrinhas de seus filhos amigos ou companheiros de trabalho ou de etnia, os descendentes de africanos formavam um tipo de família onde s laços com a tradição africana eram muito importantes. Os padrinhos e madrinhas ficavam encarregados de proteger e ajudar o afilhado até o final da vida. Vale lembrar que em algumas cidades, como Salvador, a localização de membros de uma mesma famílias de escravos vindos da África e separados na hora da venda , não era muito difícil. Havia uma tendência natural entre os escravos africanos e os libertos em se aproximarem dos recém-chegados informando-os do paradeiro de seus familiares, mesmo quando esses eram encaminhados para os engenhos do Recôncavo. Uma rede permanente de informações das diversas “nações” fazia circular as notícias sobre os familiares vendidos a proprietários diferentes. Para muitos, as separações foram definitivas, bastando que fossem vendidos para senhores em Minas Gerais ou no Rio de Janeiro. Mas para os que ficavam nas redondezas de Salvador, havia sempre a possibilidade de reencontrarem-se irmãos, pais e mães ou outros parentes.

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Os filhos das uniões não sacramentadas eram considerados ilegítimos, pela Igreja. Para se ter uma idéia de como os índices de ilegitimidade eram elevados, em Salvador, na Bahia, entre 1830 e 1874, 4/5 das crianças negras e mulatas eram ilegítimas e em São Paulo, entre 1745 e 1845 elas perfaziam 39% dos nascimentos, e em Vila Rica, Minas Gerais, em 1804 eram mais de 98% das crianças escravas.

Nas cidades os escravos podiam ser de vários tipos – domésticos, de aluguel, de ganho. Os primeiros trabalhavam em casa, junto aos seus donos, servindo-os no quotidiano como cozinheiras, mucamas, cocheiros, limpavam a rua defronte da casa, carregavam lixo e transportavam água. Os de aluguel eram “alugados” à oficinas de sapataria, alfaiataria, carpintaria ou a serviços de reparo e conservação de edifícios e estradas. Os escravos de ganho, como o nome indica, ganhavam um “jornal” oferecendo aos passantes, bolos, doces, legumes, roscas e tortas. Do produto da venda, reservavam para si algumas economias.

Juntando o jornal, os escravos conseguiam, muitas vezes, comprar a liberdade de um companheiro ou companheira com o qual se casavam. Casais assim formados, conseguiam sobreviver razoavelmente. Alugavam um quarto em um cortiço ou casinha nos arredores da cidade e criavam seus filhos. Para não atrapalhar o trabalho de seus pais, as crianças eram, muitas vezes, educadas amigas ou parentes livres, em cujas casas cresciam e aprendiam os primeiros ofícios.

Havia casais que levavam seus filhos para a casa do senhor, onde eles cresciam misturados ao “sinhôzinho e à sinházinha”. Serviam de brinquedo para o filho do senhor ou eram enfeitados e arrumados como verdadeiros bonecos a fim de exibir a riqueza da família do seu proprietário. Os “moleques”, como eram chamados os escravinhos, desde cedo dedicavam-se a atividades domésticas: levavam recados ou copos de água para a “Iáiá”, abanavam as moscas da sala com grandes leques, carregavam o missal ou o guarda-chuva do senhor quando esse ia para a igreja, etc.

No Brasil colonial, era também comum encontrar casais em que apenas um dos parceiros era escravo. Situações como essa acabavam criando desfechos dramáticos. Foi o caso de um comerciante português, José Pereira, que vivia com uma escrava, Umbelina em Salvador. Apaixonado, José alforriou a amante mas manteve como escravos dois dos filhos que ela tivera, antes de conhecê-lo. Ao morrer, José deixou uma pequena fortuna para sua mulher e a filha que tinha nascido dessa união. Entre os bens que a menina Gertrudes herdou, estavam os dois meio irmãos, a quem José ordenara em seu testamento, que trabalhassem como “escravos de ganho” para fazer um dote até que Gertrudes completasse 18 anos. Imaginem a situação: uma garotita mulata livre tendo a seu serviço, dois meios-irmãos escravos!

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Quando  abandonadas por seus companheiros, as mulheres escravas e forras criavam seus filhos como podiam. Havia até aquelas que “vendiam” as próprias filhas para sobreviver. Em  Minas Gerais, durante o século XVIII, não foram poucas as mulheres, como uma certa Apolônia, mulata e solteira que, segundo um processo que lhe foi movido por um bispo mineiro,

“devendo viver como católica e não causar escândalos a seus próximos com o mau procedimento, ela faz tanto pelo contrário”, prostituindo-se, junto com duas irmãs e a mãe, “numa casa que alugou no campo onde recolhe quem à noite as busca”.

Assim, era comum haver famílias compostas exclusivamente por mulheres,  que para ganhar a vida recorriam cedo à prostituição. Nos processos judiciais movidos contra elas aram chamadas de “mulher vagabunda”,desordeira”, “depravada”, “de má fama” – em vez de dados concretos como nome, ocupação e idade . O que as autoridades não percebiam é que com “uma ou duas patacas no bolso” e com a ajuda de comadres, amigas ou vizinhas que as ajudavam, elas mantinham filhos, maridos, pais velhos, parentes pobres e agregados. Os filhos  eram removidos para outros lares e alguns deles só vinham reencontrar suas mães quando se tornavam adultos.

Sobre a separação de mães e filhos escravos vale lembrar que para horror e tristeza de muitas escravas que trabalhavam nas cidades, os senhores as separavam de seus filhos, alugando-as como amas-de-leite. O hábito das brasileiras de não amamentar seus filhos, alugando para isso uma “mãe preta”, escandalizava os viajantes estrangeiros que passavam por aqui. – Mary del Priore (“A Família no Brasil Colonial”).

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“Casamento de negros em uma casa rica”, de Debret.

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