A “descoberta” do Brasil

D. Manuel, noivo de d. Maria, filha dos reis católicos, parecia querer apresentar Portugal ao mundo como a nova potência da cristandade ocidental. Por isso, organizou uma expedição que deveria dobrar o mercado indiano ao comércio com
os lusitanos e também intimidar, até pela força das armas, os que se interpusessem a esse comércio. A meta era instalar entrepostos em Sofala, para adquirir ouro e especiarias em Calicute, além de enviar missionários, um teólogo e freis capuchinhos para catequese dos moradores locais. Depois de receber as bênçãos da Igreja, a armada, comandada por Pedro Álvares Cabral e composta de doze naus e uma caravela, zarpou com destino à Índia a 9 de março de 1500.

Entre outros capitães que seguiam sob seu comando, figurava Bartolomeu Dias, que cruzara o cabo da Boa Esperança – e onde, meses depois, desapareceria num naufrágio –, e Nicolau Coelho, companheiro de Vasco da Gama na sua viagem ulterior. Com 32 anos, nono filho de Fernão Cabral e d. Isabel de Gouveia, senhor de Belmonte e donatário de Azurara, o “homem que inventou o Brasil” – no dito espirituoso de Afrânio Peixoto – pertencia a uma família nobre que servira a d. Afonso V em suas cruzadas africanas e aventuras militares na península Ibérica. Era muito mais um homem de guerra, um chefe de armas, do que um navegador. A escolha de d. Manuel não fora inocente. O monarca pretendia avaliar os riscos militares de estabelecer relações comerciais e religiosas com o Oriente. O estabelecimento da Carreira das Índias exigia certa estratégia. Afinal, tratava-se do futuro do negócio das especiarias e das demais riquezas indianas.
A armada percorreu em cinco rápidos dias o caminho até as ilhas Canárias. A essa altura, uma das naus já havia desaparecido: “comeu-a o mar”, dizia-se então. No tom que marcou tantas dessas trágicas viagens, registrou o escrivão Pero Vaz de Caminha: “Fez o capitão suas diligências para a achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais”. Segundo o mesmo cronista, a armada seguiu o “mar de longo”, ou seja, navegando direto numa grande extensão até os mares que banhavam a que seria chamada Terra de Santa Cruz. O afastamento para oeste, hoje sabemos, foi intencional, pois, desde as viagens de Diogo de Teive ao Norte da África, em cerca de 1452, sabia-se da existência de terras a noroeste dos Açores e da Madeira. Desbravava-se, então, uma região do Atlântico de difícil navegação que incluía o Mar dos Sargaços – região mítica no atual Caribe.
Uma carta veneziana de 1424 representou, por sua vez, um conjunto de ilhas atlânticas, ao sul e ao norte das Canárias – Antilia, Satanases e Saya, Imana e Brazil –, que passaram a figurar em outros mapas cada vez mais a ocidente da Europa. Datada de 1474, a célebre carta de Toscanelli, endereçada ao príncipe d. João, ou a algum membro de sua futura Corte, o incentivava a buscar um caminho para as Índias em viagem transatlântica, tomando rumo ocidental e baseando-se na existência de algumas das ilhas acima mencionadas. A região, aparentemente desconhecida pelos portugueses, era, tudo indica, conhecida de marinheiros franceses, como o negociante e marinheiro Jean Cousin, provável visitante do Amazonas em 1488, assim como dos espanhóis, Diogo de Lepe e Alonso de Hojeda, que teriam passado por trechos da costa norte brasileira antes de 1500.
Tendo em vista a pressa de se retornar a Calicute, é de se estranhar que a frota de Cabral pudesse perder tempo “explorando” zonas desconhecidas e já chanceladas, há seis anos, pelo Tratado de Tordesilhas. Tomar posse das terras demarcadas devia fazer parte dos planos da expedição. Por que outra razão uma das treze embarcações, a conduzida por Gaspar de Lemos, teria voltado a Lisboa, anunciando a “descoberta”, quando os olhos da cristandade ocidental estavam bem abertos sobre a primeira expedição a abrir oficialmente a Carreira das Índias?
No dia 22 de abril de 1500, chegando ao sul do atual estado da Bahia, os portugueses jogaram âncora na embocadura de um pequeno rio. Depois de navegar por dez léguas ao longo da costa, fundearam numa baía a que se deu o nome de Porto Seguro. A vastidão da selva, invadindo a praia, impressionou: “as árvores são muitas e grandes”, anotava um atônito Caminha. No dia 26 de abril, uma missa celebrada pelo franciscano Henrique Soares de Coimbra marcou os festejos do Domingo de Páscoa. Em 1º de maio, uma cruz foi plantada. No ar, o som de araras, maritacas, tuins e pica-paus; era “a terra dos papagaios”, terra ruidosa que, em cor de incontáveis “prumagens”, irá figurar em mapas. No dia seguinte, Cabral zarpava para Calicute. O Brasil havia sido “oficialmente descoberto”.
Da caravela, o capitão-mor e seu escrivão, Caminha, observavam batéis e esquifes que seguiam em direção à terra. Na praia, dois, três e logo dezoito ou vinte homens gesticulavam. “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse as vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas.” Registravam-se, assim, as primeiras impressões sobre uma gente que logo se revelaria nova e desconhecida. Que gente seria aquela? A nudez era novidade? Não. Portugueses estavam
familiarizados com etíopes, com os quais se deparavam quando costeavam o litoral africano, eles também nus e portando mortíferas azagaias. Os registros se sucedem na pena de Caminha: logo demonstraram ser pacíficos. Quando os portugueses se aproximaram, deitaram no chão os arcos e as flechas impregnadas de venenoso sumo de mandioca. Cabelos corridos, corpos depilados e pintados com tintura de jenipapo, penas coloridas na cabeça e na orelha, contas brancas em colares: era gente formosa e alegre. Ao som da gaita de Diogo Dias, almoxarife, os índios “folgaram e dançaram”.
Se, por um lado, esses primeiros contatos pressupunham uma aproximação pacífica, na forma de troca de presentes e alimentos, por outro, houve um distanciamento. Os portugueses ignoravam a identidade dos povos indígenas, acusando-os de não ter religião ou de desconhecer a agricultura. Consideravam que seu nível civilizatório era igual ou inferior ao dos nativos africanos, parecer que, em breve, justificaria a exploração e a catequese obrigatória de tribos inteiras.

Ver mais  O papel dos intelectuais negros no Brasil Oitocentista

– baseado em “Uma Breve História do Brasil”, de Mary del Priore e Renato Venancio (Editora Planeta).

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 Santa Maria: uma das caravelas da armada de Colombo.

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  1. Iolanda Figueiredo

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