A culpa é do funk?

Na última semana, houve uma grande polêmica em torno da uma menina de 8 anos, que se apresentava como cantora de funk. Houve campanhas pelas redes sociais, e o ministério público de São Paulo resolveu investigar. Confesso que fiquei bastante incomodada com as fotos e vídeos da garota. É, no mínimo, bizarro ver uma criança com roupinhas minúsculas, dançando de forma provocante, fazendo caras e bocas, jogando o cabelo para lá e para cá. As músicas eram maliciosas e inadequadas – nada tão pesado, em comparação a outras letras do funk que circulam por aí. O pai candidamente se defende dizendo que não tem “nada de mais” na performance da filha.

Já antes da polêmica, os vídeos da menina receberam centenas de milhares de acessos. Todos admiradores inocentes? Duas coisas chocam nessa história. Em primeiro lugar, a família que não hesitou em expor a garota aos olhos cobiçosos dos internautas e fãs, em tempos em que a pedofilia é quase uma obsessão da sociedade. Outra, menos óbvia, é de como boa parte da sociedade reage com naturalidade à sexualização da infância. Infelizmente, esse tipo de comportamento está enraizado em nossa cultura há séculos. Hoje, culpamos o funk, mas quem era o responsável no passado?

A história do Brasil mostra que a proximidade entre as crianças e sua sexualidade não é novidade. Gilberto Freyre nos conta que era costume, no século XVII, jovens senhores de engenho estuprarem meninas escravas com a finalidade de transmitir-lhes sífilis e curarem-se. Os Inquisidores do Santo Ofício passavam batido por casos em que homens maduros sodomizavam meninas de sete anos. Perseguiam-se os adultos “per desperdício de semem” — pecado gravíssimo, associado ao nanismo — e não por pedofilia.

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Casamentos precoces, e sempre com homens muito mais velhos eram rotineiros. Entretanto, não eram somente as meninas que eram obrigadas a agir como mulheres feitas. “Viajantes estrangeiros que cruzaram o Brasil, durante o século XIX, não deixaram de perceber, escandalizados, a forma pela qual a criança entrava precocemente no mundo dos adultos. Vestiam-se como eles, fumavam, davam ordens aos gritos, distribuíam chutes e pontapés reproduzindo a violência da sociedade escravista”, conta Mary del Priore.

Isso nos faz refletir sobre o outro lado da questão, que ficou meio ofuscado pelo caso da menina funkeira, mas que foi levantado por educadores e jornalistas: e os meninos do funk? É adequado que crianças e adolescentes do sexo masculino cantem letras pornográficas e machistas? As letras, que fazem enorme sucesso, diga-se de passagem, falam do sexo com prostitutas, de obrigar meninas a fazer favores sexuais (em troca de drogas), enfim, estimulam a tratar as mulheres como simples objetos sexuais – descartáveis e desprezíveis.

Em outras palavras, os garotos do funk de hoje estão apenas reproduzindo o modelo patriarcal de virilidade que já existia no passado. Como miniaturas dos adultos, repetem chavões e ideias retrógradas e preconceituosas. No Brasil Colônia, os filhos dos senhores de engenho eram ensinados desde cedo a usar as mulheres como bem lhes aprouvesse: a iniciação sexual era com as escravas ou com as prostitutas, como relata Gilberto Freyre. O autor destaca o caráter passivo daqueles que eram escolhidos para o sexo nessas circunstâncias – inclusive os jovens escravos. O pai estimulava o filho a fazer o que quisesse com sua propriedade – como ele mesmo fazia. A prostituta, nesse sentido, desempenharia as mesmas funções das cativas.

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O preço dessa triste página da nossa História foi a sífilis, que destruiu muitas vidas naquela época, matando e cegando indiscriminadamente. Porém, além dela, e talvez com efeitos mais devastadores e duradouros, ficou a herança maldita de uma sexualidade baseada no poder, na dominação e no machismo. Esses meninos e meninas, incentivados pelos adultos, nada mais fazem que repetir comportamentos antigos e cruéis, que ainda hoje minam os relacionamentos entre homens e mulheres. Será que podemos simplesmente culpar o funk e mudar de assunto?

– Márcia Pinna Raspanti.

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Mc Melody: polêmica.

3 Comentários

  1. Júlio Torres
  2. Carmem Ligia F. BONGIOVANNI

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