A arte de fazer filhos

No passado, uma grande família era sinônimo de solidariedade e perpetuação. Dela dependia o que se produzia para comer, a defesa de interesses e do território. “Crescei e multiplicai-vos” era ordem obedecida, pois se acreditava que Deus ajudaria a criar os filhos, essa “riqueza do pobre”. Desde o século XVII, circulavam na Europa manuais de bons procriadores, do tipo A arte de fazer filhos. Neles se ensinava como tê-los saudáveis, perguntava-se se as mulheres mais belas eram mais fecundas ou se o sono favorecia a geração de meninos. Os autores indagavam, surpresos: “Por que, entre os animais, só as mulheres, no tempo da gestação, admitem e têm apetite por congresso [sexual]?”.

Para as mulheres, a gravidez era um impressionante estado de poder. Se por um lado ela reproduzia a maldição lançada sobre Eva – dar à luz em sofrimento –, por outro, tornava-se, como mãe, sinônimo de abundância e riqueza. Ela dava os frutos da vida, fonte de uma linhagem, e ainda mais importante: a gravidez permitia romper com a dependência do homem, este excluído do processo de gestação.

Nos já mencionados manuais de casamento, filhos eram vistos como resultado de práticas “virtuosas”. Só o “amor honesto”, e não a “satisfação de deleites”, justificava “a bênção do Senhor”, como insistia frei Luís de Granada, pois os coitos “desordenados” podiam gerar “monstros” e seres imperfeitos. Bastardos eram percebidos como “imperfeições da cristandade e aleijados da natureza”. Apenas o amor dos “perfeitos casados” trazia “a consolação e o gosto dos filhos”, esses “doces bens”.

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Associada à difusão do casamento, durante o período colonial, a procriação se constituía no dever da boa esposa. Ao casar-se e cumprir sua função reprodutiva, a mulher se via elevada ao papel de mãe, esvanecendo qualquer outro. Mas cumprir tal dever não se fazia sem cuidados.

Até o século XVIII, com base em Aristóteles, a maioria dos médicos acreditava que as mulheres não geravam filhos; apenas alimentavam ou faziam amadurecer o fruto. “A mulher é um animal imperfeito e passivo, sem princípio e vigor eficientes, razão por que os bárbaros lhe chamam animal acessório”, resumia o médico português Francisco da Fonseca Henriques. Para outro médico, o mineiro dos Setecentos, Francisco de Melo Franco, o útero era uma “máquina” que, ativa, produzia “ternura e carinho materno”. Devia estar sempre “trabalhando” ou gestando para evitar doenças mais sérias, e dependia exclusivamente da “matéria seminal viril” para ser fecundado.

A inferioridade da mulher, já sublinhada pela obrigação de obediência e servidão no casamento, era respaldada pela visão dos médicos. Por ter ossos, cartilagens, ligamentos e fibras mais frágeis, a mãe apenas carregava “o ovo com que o sexo fêmeo concorre para a propagação, assim como sucede com os ovíparos”. Para o filósofo Voltaire, por exemplo, a mulher “não passava de uma galinha branca na Europa e preta, na África”. Foi preciso aguardar a evolução da embriologia e dos trabalhos de médicos como Prévost, Dumas e Von Bauer, no século XIX, para compreender a diferença entre ovo e óvulo. – Mary del Priore.

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 “Madona e criança”, de Pompeo Batoni.

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