Independência, preconceito e as ondas separatistas

Vivemos um momento em que os regionalismos voltam a aflorar. Nas redes sociais e na imprensa, diferenças políticas e eleitorais trazem à tona velhas rivalidades entre estados e regiões do país. Mary del Priore destaca que a própria história também se faz excludente e preconceituosa, deixando de lado acontecimentos fundamentais para a formação da nação brasileira. Confira no texto abaixo, que faz referência a uma obra de um grande historiador: “A outra Independência – o federalismo pernambucano de 1817 a 1824”, de Evaldo Cabral de Mello.

      A sensação que se tem ao virar a última página deste A outra Independência – o federalismo pernambucano de 1817 a 1824, de Evaldo Cabral de Mello é a de que somos uma nação adormecida no berço esplêndido…da ignorância. Entre outras ignorâncias, a de nossa própria história. História construída, há pelo menos um século, de forma seletiva, excludente e – por que, não? – preconceituosa. Tudo indica que, isolados no sudeste, fazemos uma história do Brasil, na maior parte das vezes, ditada pelos interesses de hegemônicos centros acadêmicos. Em nome destes interesses, raros grupos se preocupam em pensar outras regiões do Brasil. No Rio, nos esquecemos do Acre. Em São Paulo, do Amapá. Em Minas do Piauí ou Maranhão. Seguimos, impávidos, fazendo a história do Brasil sem levar em conta terras e gente que continuamos desconhecendo. A esta tradição que data do século XIX, quando se trata de estudar a Independência, Cabral de Mello dá o nome de rio-centrismo: uma interpretação do nascimento da nação graças ao brilho de gente nascida no eixo Rio-SP-Minas e que não, por acaso, visavam tanto a maior glória do país, quanto a dos próprios dos autores da ideia.

Pois este outro livro – “outro”, pois Evaldo Cabral de Melo é autor de uma fatia substancial de nossa historiografia com inúmeros livros publicados – é um alerta sobre a miopia com que aprendemos ou lecionamos história do Brasil. Absolutamente independente, desvinculado da Universidade brasileira, ele vem construindo com paciente labor e apetite voraz por arquivos, a história de uma região riquíssima de homens, de fatos políticos e de cultura que é o Nordeste. E nele, Pernambuco. Mas não só despertador de consciências, o livro é também uma reconstituição irreprochável de um momento pouquíssimo conhecido: o da tentativa de rompimento da província com a centralização proposta por José Bonifácio. A verdade, é que nem todos desejavam a formação de um Império unitário! Pernambuco não apenas queria, como podia ter se tornado uma província independente.

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Mas vamos refrescar a memória para entender melhor a importância deste livro. 1820: vinda de Lisboa, a corte que se formou em torno de D. João VI e, com interesses no Brasil, era contrária ao seu retorno a Portugal. A tensa relação entre este grupo e a elite que lá permaneceu eclodiu durante a Revolução do Porto, movimento liberal, favorável à convocação de uma assembléia Constituinte, mas, que exigia o retorno do rei. A presença de D. Pedro como regente brasileiro criava uma dualidade de poder. Passou a exigir-se, também, o seu imediato retorno. Em 9 de janeiro de 1822, o Fico é a resposta. A retaliação chega em um mês, quando a metrópole nivela o Rio de Janeiro à condição das demais províncias. O regente responde com a expulsão das tropas lusas e a disputa entre os dois lados termina com o rompimento de D. Pedro com a mãe pátria. Entre 1820 e 22, elites como a pernambucana, tiveram sérias dúvidas  em relação aos projetos políticos que se esboçavam, de um e de outro lado do Atlântico. E por quê? Pois a Revolução do Porto contara com representantes coloniais, eleitos nas diversas províncias. Estas, por sua vez, foram recompensadas com a possibilidade de eleger juntas governativas que lhes davam controle sobre o sistema político e sobre as rendas internas de suas ex-capitanias. É aqui que entra o brilho do livro de Evaldo. Ele conta como este processo – um longo, denso e tenso processo – foi vivido por diferentes grupos alguns desejosos de integrar o Império que se estenderia da Amazônia ao Sul, outros resistindo à centralização conduzida pela Corte, no então, distante Rio de Janeiro.

Primeiro o cenário: Pernambuco era uma província pujante. Eram excelentes as receitas de sua alfândega, que a exportação do algodão só fizera crescer. Na outra ponta, inchava uma Corte parasita, cujas necessidades de dinheiro se traduziam em drenar a riqueza das províncias do Norte.  Seu monstruoso apetite só deixava espaço para uma conclusão: a metrópole não estava mais em Lisboa, mas no Rio! As lembranças da “revolução” de 1817, primeiro movimento de basta à centralização proposta por D. João VI, ainda estava fresca. O ódio aos portugueses, a paixão pela autonomia e o crescimento das idéias republicanas, era coisa antiga entre pernambucanos.

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Neste caldo se desenham antagonismos: os alimentados por elites da Mata Norte, de PE e da Paraíba versus os da Mata Sul e Alagoas. Os primeiros plantados no nosso “cotton country”, sob terras parceladas e acostumados ao trabalho livre. Os segundos, realistas, escravistas e açucarocratas. Uns urbanizados, vivendo em sobrados, comerciando com o sertão e o mundo. Os outros, ainda, isolados, na casa grande do engenho. É ai que surge uma destas lideranças que poucos conhecem: Gervásio Pires Ferreira, primeira geração de uma rica família de mercadores recifenses. É dele o projeto para uma “república pernambucana”: um autogoverno provincial, livre, sobretudo, dos inúteis “empregados públicos a se perpetuarem na ociosidade”, que inchavam o aparelho do Estado no Rio de Janeiro às custas das províncias ricas como Pernambuco. Sem contar a sua viva simpatia pelo liberalismo lusitano que consagrava princípios de igualdade, propriedade e liberdade de expressão. Do outro lado do cabo de guerra, D. Pedro e Bonifácio tentavam amarrar as províncias ao seu projeto de centralização “unitária”. No meio, negociações com o Regente, lutas entre grupos maçônicos cariocas e recifenses, ameaças das tropas portuguesas, cobranças de tributos atrasados, enfim, um caudal de micro e macro conflitos que o autor vai cirurgicamente expondo aos olhos do leitor.

Os seis meses seguintes preparam uma constatação: a Independência era um retrocesso em relação às conquistas da Revolução do Porto. Tal decepção, não significava, tampouco, uma nova luta pela Restauração da antiga metrópole, pois Portugal dera, então, uma guinada para o absolutismo. Em vez de obedecer ao Rio, com suas vorazes demandas ou obedecer a Lisboa, melhor a independência local e a tantas vezes discutida, anunciada e adiada proclamação. No seio de uma liderança – a de Manuel de Carvalho Pais de Andrade -, federalistas e unitários ressentidos com os “matutos”, se dão às mãos no projeto de enrolar o Rio de Janeiro e aplainar diferenças. E a Evaldo de destrinchar os vários fios puxados pelos diferentes atores desta meada: o imperador e seus ministros, os federalistas e membros do colégio eleitoral, o almirante Cochrane à serviço das forças da ordem, Maria Graham, observadora das idas e vindas do almirante inglês, entre tantos outros. Não cabe, aqui,  apresentar cada um deles, mas convidar o leitor a conhecê-los.

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Em mais uma obra de extremo fôlego, Cabral de Mello nos dá muitas lições. Para começar, ele reabilita a história política, considerado, nos últimos anos, menos nobre, porque entrincheirada numa espécie de positivismo despido de qualquer renovação epistemológica. Pois ele a renova. Atento à singularidade dos fatos e ao peso das circunstâncias, Cabral de Mello desenrola aos olhos do leitor, um enorme painel onde se movem centenas de personagens históricos, desconhecidos da maior parte dos historiadores do sudeste, interrogando as informações  que deles extrai, com questões nevrálgicas para o entendimento do episódio: os problemas de participação dos diferentes grupos sociais, o papel de cada um dos atores ou dos grupos de pressão, as regras da política local e da violência política, os vários sentidos do federalismo nos primórdios do Império. O que o preocupa é o estudo das tensões, dos antagonismos,  e dos conflitos que decorrem da repartição de um projeto regional e da disputa por sua autoridade. Outra lição extraímos do cuidado com que lê os documentos: são relatórios, periódicos, correspondências, despachos diplomáticos, memórias exaustivamente examinados, para iluminar as escolhas feitas pelos atores históricos. Construindo uma narrativa  e uma interpretação original sobre um dos momentos menos conhecidos da nossa história, ele compõe uma obra erudita, densa, clássica. Para os iniciantes, seu livro é uma viagem difícil, porém, necessária. Para os iniciados, um passeio obrigatório.  – Mary del Priore.

 

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