Vida de princesa: deveres, amor e reclusão

As princesas dos contos de fada precisam apenas ser belas e encontrar um príncipe encantado que as proteja. A vida, porém, não é tão fácil para as princesas “de verdade”: elas precisam estar preparadas para herdar o trono, tomar decisões importantes, fazer um casamento vantajoso para sua nação e ter muitos herdeiros. No Brasil, a filha mais velha de D. Pedro II, Isabel, foi educada com rigidez, em meio a muitos estudos e em reclusão. Não era considerada um exemplo de beleza, pois, era um tanto gordinha e as más línguas diziam que seu nariz parecia uma berinjela. Era muito religiosa. Casou-se com o Conde D’Eu em 1864, mas demorou onze anos para ter seu primeiro filho. Nesse período, sofreu com a sombra infertilidade, considerada um grave defeito para as mulheres da época.Mais comentários maldosos. Os críticos ao regime monárquico não perdoavam nada…Mesmo sem herdar o trono (em 1889, a república seria instaurada), Isabel passou para a História por ter assinado a Lei Áurea, que acabou com a escravidão no país. Conheça mais sobre a infância de Isabel:

Às 18h25 do dia 29 de julho de 1846, Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga. Bandas de música percorreram as ruas e festas populares encheram as praças. A infância teria sido pacata se não tivesse perdido, no espaço de três anos, os dois irmãos prometidos ao trono do Brasil: Afonso Pedro e Pedro Afonso. Ela cresceu ao lado da irmã, Leopoldina, nascida em 13 de julho de 1847. Aos 4 anos, Isabel foi reconhecida herdeira da Coroa. Cresceu como a princesa que teria de fortalecer o princípio monárquico apesar de ser mulher.
Aos pés da imperatriz Teresa Cristina, que gostava de árias italianas e de bordar, as meninas cresceram na chamada “chácara imperial” em São Cristóvão: um parque com áleas de mangueiras e tamarindeiros. A soberba alameda de bambus, onde gostavam de correr com amiguinhas, fazia as vezes de uma abóbada de catedral. Um recinto murado debaixo das janelas do quarto da mãe servia para brincar ao ar livre e fazer jardinagem. Dos andares superiores do edifício, viam-se as cores do mar, do lado do Caju. Do outro lado, o esplêndido recorte da Tijuca e do Corcovado. Para fugir às epidemias que varriam a cidade no verão, deslocavam-se para Petrópolis. Embarcavam no Arsenal da Marinha numa galeota a vapor e navegavam entre ilhotas pitorescas até Mauá. Ali tomavam o trem que os levava serra acima até o vilarejo que, segundo as memórias de Isabel, abrigava uma “residência deliciosa: jardins floridos, canais que atravessavam a cidade, bonitas casas, colinas cobertas de bosques, montanhas ao longe, algumas de granito, cujos flancos o sol tingia de rubro ao entardecer…”.
Sua primeira aia foi D. Rosa de Sant’Ana Lopes, a quem Isabel carinhosamente
chamava de “minha Rosa”. Uma senhorinha solteirona das mais tradicionais, cortesã de nascimento, mas sem nenhum interesse intelectual. Apesar do afeto, a relação entre as duas era a de uma criada com sua patroa. Ela tinha 10 anos quando chegou a São Cristóvão aquela que, junto com o pai, seria uma influência definitiva: Luísa Margarida Portugal de Barros – na França, condessa de Barral, e, no Brasil, condessa de Pedra Branca. Amiga íntima de sua tia Francisca, tinha um pé de cada lado do Atlântico: era senhora de engenho, nascida no Recôncavo baiano e cortesã de Luís Filipe de Orléans, que a designara justamente dama da princesa de Joinville. Viveu anos em Paris, frequentando a família real e, depois, acompanhou o casal Joinville em seu exílio em Claremont. Poucas brasileiras conheciam o grand monde como a Barral.
A sociedade fechada em torno do palácio e da família imperial constituía uma
hierarquia intocável, um mundo à parte. A proximidade com criados ou cortesãos não significava familiaridade. Além disso, as duas princesas viviam afastadas do público. As grandes moradias em São Cristóvão ou Petrópolis garantiam seu isolamento. No alto da pirâmide, o pai e monarca, senhor de autoridade indiscutível. Impossível contrariá-lo. Ele sabia colocar uma muralha invisível entre sua pessoa e as demais. Só relaxava a guarda com as filhas, a esposa e a Barral. A condessa e o imperador usaram o espírito para esconder do mundo a paixão que nutriram, por décadas, um pelo outro.
Carinho paterno? Muito: “Dá um beijinho em cada uma das pequenas e dize-lhe que não pude achar bonecas de cara de cera, irão das outras.” Dedicado, mas nunca indulgente. E Isabel a responder: “Meu caro Papai. Eu estimo que chegasse bem e que o tempo desse lugar fosse o que desejava. Eu dei bem minhas lições e ainda vou ler esta tarde com o mestre. Adeus, Papai, aceite um abraço e deite sua bênção à sua filha do coração.”
Obediente e dócil, como se esperava que fossem todas as filhas. “Gorda”, “bondosa” e dona de “candura angelical”: assim era descrita Isabel pela condessa de Barral. Enquanto, no início da adolescência, as jovens da elite estudavam para
desempenhar um papel de esposa do lar – cuidar da casa, dirigir escravos, educar filhos –, Isabel dobrou as horas diárias de estudos. Agora eram 15, divididas entre grego, latim, alemão, italiano, francês, inglês, geografia, história natural, história de Portugal ensinada pelo próprio imperador, história do Brasil, história moderna da França e da Inglaterra, antiga e romana, da América e eclesiástica, retórica, física, economia política, geologia, filosofia, mineralogia, astronomia, botânica, desenho, piano, pintura e catecismo.
O pai se preocupava: “Quanto à educação, só direi que o caráter de qualquer das princesas deve ser formado tal qual convém a Senhoras que poderão ter que dirigir o governo constitucional de um Império como o do Brasil. […] A instrução não deve diferir da que se dá aos homens, combinada com a do outro sexo, mas de modo que não sofra a primeira.” Era preciso combinar a firmeza da possível governante com a suavidade do sexo. Possível governante? Como tantos homens, sobretudo os que integravam uma sociedade patriarcal, D. Pedro não parecia convencido de que as mulheres pudessem exercer esse ofício. Embora valorizasse sua filha, parecia incapaz de aceitá-la como sua sucessora. Tanto mais que ela deveria submeter-se a um marido. E esse marido, talvez, quisesse influir nos destinos da nação.

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Isabel reteria alguma coisa do fluxo de informações teóricas que choviam sobre sua
cabeça? A troca de bilhetes com o pai só confirma as dificuldades: “O que devemos ler em lugar de economia política? Leiam física e química.”;
“Papaizinho, ainda está zangadinho comigo? Não, senhorinha, e toma um abraço, contando que me dê boa lição depois da audiência…” Ela fugia, inventando resfriados, “mãos geladas” ou “dores de ar” que interrompiam as aulas: “Sua Alteza confessa que sentia uma ligeira indisposição e que para fugir de estudar aumentava-a muito […] era o medo que a fazia esfriar. Seja lá o que for desde que não quis mais estar doente, está boa…” A aia sublinhava as palavras, em carta à imperatriz em viagem com o imperador ao Norte do país.

Para fazer as lições, era preciso a ameaça de castigos leves: não ver a foto dos pais, por exemplo. A verdade é que, apesar de muitas aulas, a princesa não absorvia todos os conteúdos. A condessa de Barral, ícone da tradição francesa, era um guia de civilidade e etiqueta. Ensinava à princesa como passar da vida privada para a vida pública. Certas conveniências eram obrigatórias: como tirar as luvas sem se atrapalhar. Como sentar com joelhos e pés juntos e o dorso ligeiramente inclinado para a frente, fingindo interesse pelo interlocutor. Como pisar diferente, na casa ou na rua. Como mostrar ou esconder os pés, sob as pregas do vestido. Qual a diferença entre sorrir – sempre – e rir – nunca, pois enfeava! Isabel não poderia ignorar, jamais, os efeitos de seus atos, mesmo os mais insignificantes. Havia uma filosofia de vida dissimulada por trás de várias regras para tudo o que fizesse: coser, bordar ou conversar. Desses gestos, as mulheres, princesas ou não, deviam retirar certa satisfação ou pequena felicidade, tal como a descrita nos contos de fadas.
A educação de uma moça era também sua edificação. Cada regra repousava sobre
um princípio moral. A negligência poderia levar à deriva. Isabel tinha que submeter seu comportamento a uma vigilância sistemática, pois ele tinha a ver com seu orgulho próprio, o de sua família e de seu futuro marido e de seu futuro Império. Ela tinha que ser estoica, sem sabê-lo. E ligar de maneira indissolúvel desejo e dever, a ponto de não saber onde começava um e terminava o outro.

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Nos dias de festas, as filhas do imperador assistiam de longe à procissão de são Sebastião, o padroeiro da cidade, ou de Corpus Christi. Porém, não eram vistas em meio às pequenas barracas que ofereciam comidas, bebidas, leilões e mágicas. Fazia parte da agenda, controlada pelo pai: “Levantar às sete, no inverno, e seis no verão. Até as sete e meia, hora da missa, vestir, rezar, e no verão, enquanto não vão para a missa, ler catecismo ou algum livro pio. […] Nos domingos e dias santos de guarda, desde as nove horas até a hora de ir à missa, a que assistimos juntos, catecismo e leituras pias.” Era preciso conciliar harmoniosamente a vida cotidiana e a oração.
Ao completar 14 anos, Isabel foi prestar o juramento solene de princesa imperial do Brasil perante as Câmaras, conforme prescrevia a Constituição do Império. Diante de 39 senadores, 96 deputados e representantes da imprensa, ela repetiu: “Juro manter a religião católica apostólica romana, observar a Constituição política da nação brasileira e ser obediente às leis e ao imperador.” Aplausos! Vestida de branco, coberta com o manto verde e dourado, cercada de ministros, mordomos, porteiros, barões, enfim, Isabel representava uma época liberal e pacífica. Significava que os benefícios trazidos pelo regime monárquico constitucional teriam continuidade.

Mas, apesar de ser declarada futura imperatriz, sua vida não mudou. Vivia enclausurada. Não aparecia em público, não frequentava a vida social da capital, não participava de bailes e jamais foi ao teatro. Não tinha ideia da situação política do Império, não assistia a um despacho ou a uma reunião de gabinete. Do mundo exterior vazava, porém, uma realidade para dentro dos muros do palácio: a da escravidão. Desde pequenas, elas a conheciam. Vinha de longe a preocupação de que as meninas conversassem com “molequinhos” ou os vissem nus. Escravos se banhando lá longe, na praia, ou lavadeiras seminuas nas lagoas dos arredores podiam comprometer sua pureza. A reclusão seria a melhor maneira de protegê-las de experiências inadequadas.

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Texto de Mary del Priore (“O Castelo de Papel”) e introdução de Márcia Pinna Raspanti.

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Isabel e o Conde d’Eu, no casamento; e a princesa ainda criança.

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  1. Wagner Morais

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