Por Márcia Pinna Raspanti.
“A argentina Lucía Pérez, de 16 anos, foi drogada, estuprada e empalada na cidade costeira de Mar del Plata. Após abusar sexualmente da jovem até sua morte, os assassinos lavaram seu corpo e trocaram sua roupa. Depois a levaram até um centro de saúde e disseram que ela tinha ficado inconsciente devido a uma overdose. Os médicos não conseguiram reanimá-la (…) A Corte Suprema de Justiça da Argentina registrou 235 feminicídios em 2015, numa média de um crime a cada 36 horas. Um ano antes, a cifra foi de 225 feminicídios“. El País, 20/10/2016
A notícia acima chocou os argentinos e circulou pelo mundo. Um crime brutal, revoltante e, infelizmente, cada dia mais comum. As mulheres daquele país se organizaram em uma greve geral para protestar contra o crescente número de assassinatos e ocorrências de violência contra o gênero feminino. Poucos dias depois, outra história assustadora na Argentina: um homem esfaqueou três mulheres, com idade entre 30 e 90 anos e feriu gravemente duas crianças, uma de 11 anos e outra de apenas dez meses. Ele era marido de uma das vítimas. No Brasil, são tantos casos que surgem na mídia que nem conseguimos nos lembrar de todos… O mais recente e terrível foi de uma mulher de 34 anos, que foi abusada, espancada e estuprada por dez homens, em São Gonçalo (RJ). Encontrada pela polícia, foi conduzida à delegacia na mesma viatura de dois de seus agressores. Outra notícia espantosa: o CNJ “puniu” uma juíza do Pará com suspensão remunerada (!) porque ela autorizou que uma garota de 16 anos ficasse detida em uma cela com 30 homens. Acho que não podemos sequer imaginar o horror pelo qual essas mulheres passaram.
Em meio a todos esses casos, vemos muita gente criticando os movimentos que lutam contra a violência de gênero e ridicularizando as manifestações realizadas. Outro dia, um rapaz me perguntou se eu achava que a vida das mulheres valia mais do que a dos homens…Muitos dizem que esse tipo de ação instigaria um suposto “ódio aos homens”. De onde vem essa distorção da realidade? Há raízes históricas, sem dúvida. A desqualificação da mulher, a visão de que ela é apenas uma propriedade do marido, amante ou mesmo do pai tem sido uma das maiores causas do feminicídio e da violência contra o gênero feminino. Nos tempos do Brasil Colônia, as mulheres sofriam com agressões físicas e também psicológicas, com o abandono, a humilhação e a privação de bens ou dos filhos. Mas elas tentavam se proteger e pediam ajuda para as autoridades existentes: “apelar ao governador de plantão era recurso habitual de mulheres que não hesitavam em abrir processo de divórcio ou separação de corpos no tribunal eclesiástico. (…) E havia ainda as maltratadas: mulheres que apanhavam, eram amarradas ao pé da cama ou em cercas fora de casa, deixadas ao relento, sem alimento – enfim, mulheres que sofriam toda forma de violência física”, conta Mary del Priore, em Conversas e Histórias de Mulher.
Na legislação lusa e na sociedade colonial, a punição do assassinato do cônjuge por adultério era desigual. “Enquanto para as mulheres não se colocava sequer a possibilidade de serem desculpadas por matarem maridos adúlteros, aos homens a defesa da honra perante o adultério feminino comprovado encontrava apoio nas leis. O marido traído que matasse a adúltera não sofria nenhuma punição. Diziam as Ordenações Filipinas: ‘Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela, como o adúltero, salvo se o marido for peão, e o adúltero, fidalgo, desembargador, ou pessoa de maior qualidade’. Assim, enquanto a condição social do parceiro do adultério era levada em conta, a condição social da adúltera não se revestia da menor importância; tanto podia ser morta pelo marido a plebeia como a nobre. Outra punição para as adúlteras era o confinamento em um convento”, conta a historiadora.
A aceitação de crimes em “defesa da honra” sempre foi um fato em nossa história: atravessou os tempos, coloniais, imperiais, a República Velha. Mesmo após a revolução sexual dos anos 60, a tese permaneceu firme. Um dos crimes mais emblemáticos dos anos 70, foi cometido na praia dos Ossos, em Búzios, balneário no Rio de Janeiro. Em 30 de dezembro de 1976, Doca Street, personagem da alta sociedade paulistana, matou com três tiros no rosto e um, na nuca, sua amante, a mineira Ângela Dinis. Tudo começou com uma crise de ciúme. “Ela vivia comparando Doca com outros namorados”, explicou o advogado do assassino. Acusada de “amores homossexuais” e devassidão, a defesa conseguiu provar que Ângela tinha má conduta e fora agredida para que Doca preservasse “a legítima defesa” de sua honra.
Mais uma vez, em pleno século XX, “condenou-se a vítima e absolveu-se o assassino”, resume Mary del Priore, em Histórias Íntimas. “A pena de morte para mulheres infiéis não tinha sido revogada, como demonstrou o assassinato em ‘legítima defesa da honra’ perpetrado pelo engenheiro Márcio Stancioli, de 32 anos, que descarregou seu revólver calibre 38 na mulher, Eloiza Ballestros Stancioli, também de 32 anos”, complementa a historiadora, na mesma obra. Então, quando as pessoas me questionam por que é necessária uma lei específica para crimes com motivações de gênero, o feminicídio, a História nos dá uma resposta indiscutível. Precisamos deixar bem claro que esse tipo de crime não é mais tolerado: o comportamento da vítima não justifica a violência, a morte ou o estupro. Portanto, a lei é importante (mas, não suficiente) para tentarmos combater essa herança misógina que só resulta em impunidade.
Sempre que um caso, seja de feminicídio, violência doméstica ou estupro, vem a público, a primeira estratégia da defesa é atacar a imagem da vítima, principalmente no aspecto moral. Começam a surgir boatos, imagens comprometedoras, relatos maliciosos…E parte da opinião pública se sensibiliza com isso. A mídia vasculha a vida da mulher, em busca de fatos comprometedores em seu passado. Quem não se lembra da garota abusada por traficantes? Muita gente duvidou da sua palavra e preferiu acreditar na versão dos acusados, antes das investigações serem concluídas. E o mesmo ocorreu com a atriz e modelo que acusou o companheiro de agressão, com a moça que denunciou um político por estupro, com a menina que disse ter sido abusada na escola…Claro que toda denúncia deve ser investigada, e que os acusados têm direito a ampla defesa, mas, diferentemente do que ocorre em outros tipos de crime, quem teve sua vida exposta, quem sofreu com o pré-julgamento da opinião pública e com a desconfiança das autoridades foram as vítimas.
Portanto, acredito, sem dúvida, que as manifestações são importantes para conscientizar a população e mostrar que não podemos mais fechar os olhos para esse tipo de crime. Não aceitamos mais assassinatos e violência “em defesa da honra”. Não aceitamos mais ouvir que o estupro ocorreu porque “ela não era decente”. A lei do feminicídio é necessária. E respondendo ao questionamento que me foi feito: as vidas de homens e mulheres têm o mesmo valor e está na hora de deixarmos isso bem claro. Não merecemos morrer ou sofrer violência por que alguns simplesmente não aceitam nosso lugar, tão duramente conquistado, na sociedade. Isso tem que acabar.
– Texto de Márcia Pinna Raspanti.