Ser criança no Brasil Colônia

 Há muito poucas palavras para definir a criança no passado: “meúdos”, “ingênuos”, “infantes” são expressões comuns para designá-las. O certo é que a infância era, então, um tempo sem maior personalidade, um momento de transição e por que não dizer, uma esperança. Mas vejamos como esses pequenos entravam na vida e depois, no mundo dos adultos.

            Vigiada por uma imagem de Nossa Senhora do Ó ou do Bom Parto, agachada ou sentada a mulher esperava os sinais do parto. Entre goles de cachaça  e de caldos de galinha com canela, a parturiente era confortada devendo mostrar-se “rija e varonil” para enfrentar as dores que se seguiriam. O ventre dilatado pela gravidez, cobria-se de relíquias e cordões coloridos, capazes, na mentalidade da época, de assegurar um parto tranquilo. No joelho esquerdo da parturiente, era amarrada uma pedra chamada “de Mombaza”, encontrada em Minas Gerais, cuja função mágico-religiosa era a de atrair a criança para fora da barriga da mãe.  Preces endereçadas a são Mamede, são Francisco e santa Margarida eram murmuradas, baixinho, a fim de afugentar qualquer perigo que pusesse em risco, a vida do nascituro. A criança vinha ao mundo entre preces, gritos de dor e alegria.

Os primeiros cuidados com o recém-nascido eram antigos. Seu corpinho molengo era banhado em vinho ou cachaça, limpo com manteiga e outras substâncias oleaginosas, e, firmemente enfaixado. A cabeça era modelada e o umbigo, recebia óleo de rícino com pimenta com fins de cicatrização. Coroando os primeiros cuidados, era fundamental o uso da estopada: “cataplasma confeccionado com a mistura de um ovo com vinho”, aplicado a uma estopa que por sua vez era presa por um lencinho à cabecinha do pequeno para “fortificá-la”. As mães indígenas preferiam banhar-se no rio com seus rebentos. As africanas costumavam esmagar o narizinho de seus pequenos, dando-lhes uma forma que lhes parecia mais estética.

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Pouco a pouco, os manuais de medicina ensinavam às mães a envolver seus filhinhos em “mantilhas suaves e folgadas”, em vez de apertá-lo em faixas capazes de estropiar os tenros membros. Sugeriam, ainda, que se substituíssem as massagens com óleos por “água e sabão” e que a estopada fosse substituída por “barretinho ou touca de pano branco”, como aconselhava Francisco de Mello Franco, médico mineiro do Setecentos. Os médicos já davam grande ênfase ao asseio corporal, mas as mães, por sua vez, cuidavam para preservar a função simbólica da sujeira do corpo infantil como uma forma de proteção contra o mau olhado. Partes como o umbigo ou as unhas, que poderiam ser utilizados para bruxarias contra os filhinhos eram cuidadosamente enterradas no quintal.

Os médicos vigiavam cuidadosamente o cardápio servido à pequena infância. A ênfase no leite era total, não só por ser “mais saudável”, mas porque “para qualquer doença é extremado remédio a mama da mãe”, como já explicava Alexandre de Gusmão em 1685. As mães, para garantir o leite, portavam, por sua vez, “contas de leite”: contas de louça em branco leitoso que por aproximação garantiam a fartura do leite de peito. Tudo indica que o hábito indígena do aleitamento até tarde tenha incentivado a amamentação na Colônia.

Além do leite, era comum darem-se as crianças “alimentos engrossados com farinha”, o que segundo Melo Franco causava “azedumes, lombrigas, obstruções do mesentério, opilação do estômago, inchações do ventre inferior, ventosidades, numa palavra, todos os sintomas convulsivos”. A lista devia bastar para que se desencorajasse essa dieta considerada inadequada para as crianças. Mas as crianças eram cevadas desde cedo com toda a sorte de papinhas, por uma única razão: as mães queriam fortificar logo seus pequeninos, evitando o risco de perdê-los nos primeiros meses.

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A passagem da alimentação mista para a semissólida operava-se com infinita precaução. A técnica de pré-digestão de alimentos embebidos na saliva dos adultos significava muito mais um cuidado, do que falta de higiene. Na tradição africana, até os três anos, as crianças comiam pirão de leite, de manhã, farinha seca com açúcar bruto; leite com jerimum ou escaldado de carne ao almoço. O prato de resistência era o feijão cozido, servido com farinha e machucado à mão. Leite de cabra era considerado poderoso fortificante infantil. Faltando leite à mãe, alugava-se uma ama de leite negra (isso no caso das famílias de posses, e já no início do século XIX) ou entravam em cena as papinhas mais variadas. De acordo com a economia caseira, o bebê recebia papa de farinha de mandioca, leite de gado e açúcar, papa de goma, araruta, banana machucada, creme de arroz e fubá de milho. Dava-se mesmo leite de coco, destemperado na água com açúcar. A preocupação materna era a de “arredondar” a criança; o critério não era alimentá-la, mas dar-lhe de comer!

Contudo, os jovens intestinos ainda preguiçosos e os diminutos estômagos despreparados para receber tantos alimentos grosseiros incentivavam a gastroenterite a cobrar alta porcentagem de pequenas vidas no primeiro ano. É bom não esquecer que estas pequenas vidas estavam ligadas estreitamente à evolução do sistema econômico. A criança era a vítima privilegiada das crises alimentares, das tensões sociais, das epidemias. As diferenças sociais acentuavam, por sua vez, as chances entre ricos e pobres; os últimos, sem dúvida, mais vulneráveis e adoentados.- Mary del Priore

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Cena familiar retratada por Debret

5 Comentários

  1. Leandro Calderan
      • Jacqueline Guimarães

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