“Segredinhos” de beleza

A partir do século XVI, o crescimento das trocas econômicas e comerciais incrementou o aparecimento de especiarias que vinham do Oriente ou da América para a Europa no fundo das naus: limão, arroz, açúcar, manteiga de cacau, que foram acrescidos ao receituário tradicional. Havia, contudo, produtos mais prosaicos. O “leite de mulher parida”, por exemplo, era considerado eficiente para a queda de cabelo, sinais e cicatrizes, erisipela, icterícia e “cancro”. Os excrementos de animais, mais conhecidos como “flores brancas”, foram largamente utilizados para clarear e cicatrizar sinais na pele – excrementos, aliás, que podiam ser tanto de sofisticado crocodilo africano quanto de prosaico cachorro doméstico. A urina, poderoso cicatrizante, idem.

É obvio que tais produtos não eram aplicados sobre a pele sem certos cuidados: cozimentos, exposição ao sol, macerações buscavam decompor ou desmaterializar o componente original. A destilação da alquimia alimentava o imaginário de pureza associado aos tratamentos cosméticos – era preciso purificar para embelezar. Matérias puras, límpidas, essenciais são, ainda, hoje, associadas à eficácia de certos produtos. A ideia platônica de associar beleza e pureza persistiu, malgrado a passagem dos séculos. O curioso é que o limite entre a cosmética saudável, aquela capaz de sanar males e doenças, e a cosmética para “embelezar” era estreito.

As mulheres resvalavam de uma para a outra, sob o olhar sempre condenatório de maridos, padres e médicos. A crítica ao uso excessivo de tintas, cremes e unguentos se acumulava. Perseguia-se a possibilidade de vê-las se assemelhar a cortesãs ou prostitutas. O critério, portanto, era o “muito” ou “pouco” maquiada, critério esse que variou ao longo dos tempos. Basta pensar no “meio-rouge” que as mulheres usavam, ao deitar-se, no século XVIII! Aos cuidados com a beleza do rosto somaram-se outros, relativos à roupa. O caráter ambivalente dessa última, desvelando ao cobrir, revestindo as partes mais cobiçadas da anatomia, constituía, ao mesmo tempo, um instrumento decisivo e um obstáculo à sedução. O filósofo francês Montaigne protestava: “por que será que as mulheres cobrem com tantos impedimentos, uns sobre os outros, as partes onde habita nosso desejo? Para que servem tais bastiões com os quais elas armam seus quadris, se não a enganar nosso apetite, e a nos atrair ao mesmo tempo em que nos afastam?”. O pudor aumentava a cobiça, que deveria se atenuar. Quanto mais afastamos do campo do discurso e do olhar os objetos referidos ao sexo, mais eles invadem e habitam o imaginário. Em todas as latitudes, o jogo entre roupa e corpo foi uma constante. As várias funções condicionam formas que implicam comportamentos, posturas, gestos que, por sua vez, influenciam essas mesmas formas e sua função. Sabemos que uma mulher não caminha com saltos altos da mesma maneira que com chinelos.

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Da mesma maneira, roupas sempre variaram de acordo com circunstâncias, classes, papéis sociais. A oposição entre o amplo e o justo, o longo e o curto, que traduziam o desconforto ou a facilidade de movimentos, reproduzia, por exemplo, na Idade Média, as clivagens que separavam nobres e camponeses. Os primeiros andavam e gesticulavam no ritmo ditado pela lentidão das cerimônias da corte; os segundos mostravam uma negligência sublinhada pela vivacidade do caminhar e pela amplitude dos gestos; uns manifestavam uma ociosidade digna do status; outros, um envilecido labor manual. Temos conhecimento de que, com o passar do tempo, a roupa curta caminharia para um ajuste e encurtamento crescentes, até ser considerada, no século XX, funcional. E sua funcionalidade tornou-se um valor de prestígio. A roupa longa, por sua vez, subsistiu como vestimenta de padres, juízes, professores, exigindo, pelo caráter solene, certa postura, certo modo de se locomover. Ela representa, ainda, a ideia simbólica de calma e majestade, reproduzindo o sentimento de gravidade e decoro que estiveram em sua base. Entre os século XVI e XVIII, a roupa, quanto a forma, cor e substância, significou uma condição, uma qualidade, um estado. Não havia dúvidas em relação a isso. Instrumento de regulação política, social e econômica, as “leis suntuárias” existiam para manter visíveis os níveis sociais de quem se vestia. O luxo de tecidos e bordados era apanágio da aristocracia, pois seus membros não podiam ser confundidos com os das camadas emergentes. Semelhante ao que ocorre hoje, com o uso de roupas de grife? Não. Algo muito mais rígido.

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Nessa época, a roupa tinha um papel político-social; funcionava como signo de hierarquização, fixidez ou mobilidade dos grupos. Um exemplo? Em Portugal, judeus deveriam usar uma carapuça amarela, e mouros, uma lua de pano vermelho de quatro dedos, “cosida no ombro e na capa”, segundo o código de leis conhecido como Ordenações Filipinas . Tais leis suntuárias funcionavam? Tem-se notícia de que mais freavam, do que impediam, o porte de determinadas vestimentas ou tecidos por quem não devia portá-las. Um exemplo? Nos finais do século XVII, durante o reinado de Luís XVII, chegou-se a cercear, de acordo com o nível social, a grossura dos galões ou a matéria dos botões. Restritos ao uso masculino, os botões só então passaram a ser usados por mulheres, antes obrigadas a manusear um sem-número de laços e fitas para fechar as vestimentas. Mas não há dúvida de que, com a emergência da burguesia e o declínio do feudalismo, tem início a corrida pelo consumo. Até então, as qualidades de vestimentas femininas eram baseadas na modéstia e na moderação, como pregava a Bíblia.

No século XVIII, tudo se precipitou. A gestão das rivalidades entre cortesãos começou a escapar progressivamente aos soberanos, e a moda, que desde o Renascimento parecia ter tendências seculares, adquiriu sua acepção moderna de tendência passageira, de gosto coletivo e efêmero. É essa, pelo menos, a definição que lhe é dada, em 1690, em um dicionário francês. Viajantes estrangeiros de passagem por Paris ficavam bestificados com o número de butiques e casas de comércio que ofereciam serviços para quem quisesse estar na moda. Cabeleireiros, peruqueiros, sapateiros, tintureiros, perfumistas, bordadeiras, costureiras, lavadeiras, joalheiros, enfim, os mais variados comerciantes eram responsáveis pela multiplicação de conceitos: beleza ou feiura, elegância ou ridículo. Tais prestadores de serviços eram chamados de petit-maîtres – pequenos mestres –, pois havia até especialistas capazes de incrustar insetos microscópicos em joias ou pedras raras em madeiras de cheiro utilizadas na confecção de botões, presilhas e pentes. E entre nós, como funcionavam tais cuidados com a vestimenta? De acordo com as informações sobre o Brasil colonial, nossas antepassadas foram excelentes rendeiras. Se o trabalho de fiar algodão, reservado às escravas negras e índias, era considerado cansativo, adornar panos caseiros, roupas, xales e redes era tarefa generalizada entre as mulheres das mais variadas condições sociais. Sentadas com as pernas cruzadas ao chão, frente a certa quantidade de bilros e uma almofada, a tarefa funcionava ao mesmo tempo como fonte de lucro e diversão. O crivo, trabalho de agulha feito sobre desenho com fios de linha e cerzido em determinado padrão, complementava os adornos em qualquer vestimenta. Sabe-se, também, que uma quantidade enorme de rendas era importada de Espanha e Portugal. Aqui, assim como lá, nenhuma mulher andava sem véus ou uma profusão de rendas nas roupas. A seda prestava-se bem para realçar tais trabalhos. De seda negra eram as mantilhas guarnecidas com rendas largas que serviam para tapar a cabeça, como um capuz, talvez para “embuçar” a dama nas ruas, na caminhada para a igreja. Há informações de que algumas eram tão grandes que só deixavam expostos os olhos, cobrindo a pessoa inteira até os pés. Mulheres negras, de origem muçulmana ou não, cobriam-se com finos véus de algodão branco, tido por “das mulheres do oriente”, além de longos mantos, que lhes caíam até os pés, envolvendo todo o corpo. Usavam-se também capas ou mantas em cores vivas.

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O anil e o pau-brasil eram costumeiramente utilizados para tornar os tecidos mais atraentes, e a urina era o produto mais utilizado na fixação das cores. Tal como na Europa moderna, onde tecidos caros serviam para a realização de modelos da moda, entre nós as mulheres não pareciam ter dificuldade para escolher. Os percalços, contudo, chegavam na hora do pagamento, pois, mesmo sendo o ambiente da terra de grande precariedade e pobreza, vestir-se com apuro fazia parte das mentalidades, e não se mediam esforços para aparecer bem.- Mary del Priore

RokebyVenus velazquez

“Vênus ao espelho”, de Velázquez.

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