Afinal, quem foi Zumbi dos Palmares? Na verdade, sabemos pouquíssimo sobre o líder do mais famoso quilombo do Brasil. Em novembro de 1695, Zumbi foi assassinado em uma emboscada, cerca de um ano após a destruição de Palmares pelo bandeirante Domingos Jorge Velho. Ao longo da História, criaram-se diferentes “biografias” a respeito desse homem, que passou de elemento perigoso a herói nacional. “É impossível escrever uma biografia de Zumbi, pois são muito poucos os traços que os coetâneos deixaram sobre o suposto homem que liderou bravamente o maior quilombo criado nas Américas durante a vigência da escravidão, o quilombo de Palmares”. Assim começa o livro “Três vezes Zumbi“, de Jean Marcel de Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira.
Os autores nos mostram as diferentes versões do personagem que foram construídas ao longo da história: no período colonial, Palmares era visto como foco de instabilidade ao sistema vigente e Zumbi tinha pouca importância neste contexto; no século XIX, passou-se a enxergar o quilombo como um empecilho à civilização, e Zumbi era retratado como um bravo guerreiro, mas o verdadeiro “herói” era o bandeirante Domingos Jorge Velho, que teria libertado a sociedade deste mal.
No século XX, Zumbi passou a ser considerado o pioneiro nas lutas contra a desigualdade e a opressão, um mártir das minorias. O antropólogo Luis Mott chegou a levantar a hipótese de um Zumbi homossexual, fazendo dele um símbolo de todos aqueles que quebram as regras vigentes. Os autores mostram que nenhuma destas versões é mais ou menos verdadeira, ou seja, todas são fantasiosas, mas refletem um contexto histórico mais amplo.
Como pouco se sabe sobre ele, Zumbi é perfeito para encarnar nossos ideais e medos. Ontem, li uma artigo que falava sobre a suposta desconstrução da historiografia “de direita” da imagem de Zumbi dos Palmares. O fato de alguns historiadores destacarem que havia escravidão no quilombo – como era prática comum também na África – seria uma forma de manchar a imagem do herói da resistência negra e tornar a escravidão, aos nossos olhos, menos cruel. Sempre digo: cuidado com os anacronismos, mesmo os bem intencionados…É inegável, contudo, que alguns autores descobriram o nicho das versões politicamente “incorretas” e, infelizmente, vendem muitos livros ridicularizando a nossa História e seus personagens, distorcendo os fatos e criando sensacionalismo.
Ora, Zumbi não era e não poderia ter sido um líder em busca da libertação do negro. Mesmo porque não havia o conceito de um “negro”, uma identidade cultural que unisse todos os africanos. Eles vinham de etnias e regiões diferentes, muitos eram inimigos e trouxeram suas diferenças para as terras coloniais. É como falar do “europeu” ou do “branco”, como se isso bastasse para criar uma cultura homogênea. Ingleses, franceses, portugueses, espanhóis, holandeses e outros travavam lutas violentas entre si e não se viam como um “povo”. O mesmo se dava com os africanos.
Zumbi não queria acabar com a escravidão e nem libertar o “povo negro” da opressão do branco. Ele apenas lutava pela sua liberdade e do grupo que formou o quilombo. Havia, inclusive, laços de amizade entre os quilombolas e os comerciantes ou outros “brancos” com quem eles conviviam. Havia escravidão dentro do quilombo, havia regras de comportamento e castigos físicos para quem não as cumprisse.
Não podemos esperar de Zumbi atitudes de um homem do século XXI. Nos tempos coloniais, muitos ex-escravos juntavam uma determinada quantia em dinheiro e compravam…escravos! Chica da Silva é outra figura histórica que já sofreu muitos ataques por se comportar como uma mulher de seu tempo. Ela queria apenas ser aceita pela sociedade, livrar-se do preconceito e da miséria. É interessante notar que certas pessoas ficam “decepcionadas” com este comportamento.
Por outro lado, acho que é muito importante que paremos para refletir sobre a escravidão e os seus efeitos na sociedade brasileira. Escolher Zumbi dos Palmares como símbolo deste “Dia da Consciência Negra” não faz dele um herói contemporâneo, mas a sua história é um exemplo de como os escravos resistiram à opressão, cada um à sua maneira. Havia muitas formas de lidar com o cativeiro, nem todas heroicas, mas acredito que sempre sofridas. Também discordo da ideia de que desmistificar personagens históricos seja uma prática negativa: idealizar o passado só dificulta que compreendamos o presente.
- Márcia Pinna Raspanti.
Bom dia, professoras. Se possível, gostaria que comentasse(m): Vereador SP Fernando Holiday afirma ao EStadão/SP desejar acabar com o dia da consciência negra. Trechos da matéria:
[Ao Estado, o parlamentar detalhou a proposta nesta quinta-feira, 5: “Seria alguma outra data que relembrasse a libertação dos negros, mas que homenageasse outra figura e que não tivesse o nome ‘Dia da Consciência Negra’. Este nome é segregacionista, acaba de certa forma sendo racista. As pessoas devem ter consciência humana, independentemente da cor da pele.”]
[Em novembro do ano passado, o jovem publicou em uma rede social que é “um absurdo” existir uma data como o Dia da Consciência Negra, que “homenageie um homem assassino escravagista.”]
[“Vou ter propostas de várias frentes, algumas delas mais polêmicas, como propor o fim das cotas raciais em concursos públicos municipais em São Paulo. É um debate que há muito tempo venho encampando, contrário às cotas porque acredito que elas reforçam o racismo ao invés de ajudar os negros. Vou propor a mudança da justificativa do Dia da Consciência Negra, que é um feriado complicado, que muitas vezes pode atrapalhar esse combate (contra o racismo)”, explicou Holiday na TV Câmara.]
Link:
http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,vereador-fernando-holiday-diz-que-pretende-revogar-dia-da-consciencia-negra,10000098234
Bom dia, Daniel. Acho importante, do ponto de vista simbólico, que exista o Dia da Consciência Negra, como expliquei no meu artigo. O vereador alega racismo reverso para acabar com a data, o que é um conceito bastante discutível. Acredito principalmente que é uma pena que nossos políticos se esforcem tanto para criar falsas polêmicas e nunca abandonem as pautas demagógicas. Há tantas questões importantes e objetivas que necessitam da atenção da nova câmara, mas o rapaz prefere se destacar por esse tipo de projeto que tem, inclusive, pouquíssimas chances de sair do papel, mas rende algumas manchetes…
Eu acho correto que acabem com essa data, ela é racista, infelizmente. Membros da sociedade, políticos em sua maioria, passaram a adotar o discurso da defesa da igualdade para alimentarem um curral eleitoral ofendendo, na minha opinião, a dignidade dos afrodescendentes, pois estes são fortes, dignos e inteligentes o suficiente para vencerem sob quaisquer circunstâncias.
Além do mais, o Brasil é um país de mestiços …. onde o tom da pele é ilusório … o próprio português que nos iniciou na civilidade são mestiços de africanos, semitas e brancos …
É difícil aceitar discurso racista dentro da sociedade brasileira.
” (…)Havia escravidão dentro do quilombo, havia regras de comportamento e castigos físicos para quem não as cumprisse.(…)”
Prezada Márcia, ao ler o texto/trecho indicado acima, fiquei com uma dúvida: em que evidências se alicerçam as afirmações de que havia escravidão dentro do quilombo, incluindo a prática de castigos físicos? Não li ainda o livro Três Vezes Zumbi, mas fiquei com vontade (de ler e de saber), apesar de não ser minha área de pesquisa. Se possível, gostaria de sanar essa dúvida: a fonte para essa afirmação, ao que parece, presente no livro de França e Ferreira, é o texto do Edison Carneiro (O Quilombo dos Palmares) ou outros documentos? Se são outros documentos, quais seriam? Por fim, apenas como sugestão, seria possível elaborar um texto sobre o livro do Edison Carneiro.
Att.
Danilo.
Oi, Danilo. Gosto muito da obra “Três Vezes Zumbi”, por fazer uma análise de como a figura de Zumbi foi descrita ao longo da História. Talvez alguns pontos pudessem ser explorados com mais profundidade, mas é uma abordagem muito interessante. Vários autores já levantaram a possibilidade de haver escravidão nos quilombos (como Edison Carneiro, que você bem lembrou), de forma semelhante ao que ocorria na África. Esse tipo de afirmação acabou se revestindo de um certo “sensacionalismo” em algumas obras mais recentes (e foi a isso que eu me referi no artigo)- alguns leitores citaram, por exemplo, o “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”. Acho que o mais importante da obra de Jean Marcel França e Alexandre Ferreira é mostrar que há poucas certezas a respeito de Zumbi e muitas especulações ou versões.
Seguem alguns links de outros artigos publicados aqui sobre os quilombos:
Quilombos e quilombolas
A família quilombola
Acredito, pelo seu texto, que você só aceitará a versão histórica mais adequada a sua visão de mundo, pouco importando se é falsa ou verdadeira .. estou errado? Qualquer descrição histórica que venha a desconstruir seus argumentos serão simplesmente ‘ não aceitas ‘, não é verdade?
Os livros que você aceita são mais verdadeiros apenas por apresentarem a versão que mais se alinha com aquilo que você deseja que seja a verdade, mas, queira ou não, existem estudos que desconstroem Zumbi como mito
Excelente artigo, esclarece sem ideologias quem foi a figura polêmica de Zumbi e seu papel na construção cultural da identidade negra no Brasil. Parabéns!
O mérito é da excelente obra”Três vezes Zumbi”, de Jean Marcel de Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira, que discute o tema com uma sólida base documental. Recomento da leitura. Obrigada!
Parabéns pelo artigo corajoso, esclarecedor e que considera a História como ela realmente é — um retrato do seu tempo — e não como muitos gostariam que tivesse sido, simplesmente para usá-la como argumento capaz de sustentar suas teses políticas. Também tenho procurado ler e pesquisar sobre Tiradentes, um herói/mártir “construído” pela República.
O mérito é da excelente obra”Três vezes Zumbi”, de Jean Marcel de Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira, que discute o tema com uma sólida base documental. Recomento da leitura. Obrigada!