A 19ª Parada do Orgulho LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais), realizada no último domingo, em São Paulo, está causando uma onda de reações exaltadas devido a uma das encenações que fizeram parte do evento: uma modelo transexual desfilou caracterizada como Jesus Cristo sendo crucificado, com os dizeres “Basta de Homofobia”. Parte da população se sentiu ofendida e entendeu que a cena foi um desrespeito à fé cristã e aos seus símbolos. Outros interpretaram a representação como um pedido de respeito à população LGBT, que tem enfrentado críticas de alguns líderes religiosos e seus seguidores. A questão é polêmica, cada um dos lados tem suas razões, mas alguns aspectos chamam a atenção em meio às discussões.
Já falamos anteriormente da tradição das festas populares no Brasil, ligadas ao calendário religioso ou do Estado. No Brasil Colônia, os festejos misturavam o sagrado e o profano: procissões, danças, banquetes, ostentação, representações teatrais, bebedeira, fantasias, namoros e sexo, faziam parte das comemorações. A Igreja tentava controlar a multidão, mas era inútil. As festas eram as únicas ocasiões em que a população podia quebrar a monotonia e as suas dificuldades diárias. Havia também espaço para a contestação. “A festa constituía uma forma de resistência e de reação contra as autoridades, quaisquer que fossem”, lembra Mary del Priore. A transgressão das regras religiosas e comportamentais, nessas ocasiões, não é nenhuma novidade.
O uso, digamos, “pouco ortodoxo” dos símbolos sagrados também faz parte de nosso passado. Mary del Priore nos conta que, em Portugal e no Brasil do século XVII, era comum “dizer-se palavras de consagração da hóstia em meio aos atos sexuais. Acreditava-se então, que proferir em latim na boca do parceiro sexual as palavras com que os padres diziam estar o corpo de Deus contido na hóstia podia ter grandes resultados: manter a pessoa amada sempre junto a si e prendê-la. (…)o sagrado invadia o profano e pode-se mesmo imaginar o quão peculiar devia ser o enlace de corpos naqueles tempos”.
Para Ronaldo Vainfas, a imoralidade confundia-se muitas vezes com a descrença e com a heresia, tornando-se práticas que interessavam a Inquisição. Nessa perspectiva, “fanchonos” e mulheres “nefandas” (homossexuais), bígamos, “defensores da fornicação, questionadores da primazia do celibato eclesiástico, ou da virgindade de Maria”, blasfemos, feiticeiros, entre outros, se tornariam alvo das perseguições inquisitoriais. É interessante notar que comportamentos sexuais considerados “não naturais” pela religião sempre foram considerados perigosos e ofensivos ao “sagrado”.
Laura de Mello e Souza relata que houve registro de vários casos de “blasfêmias” contra Jesus Cristo e os símbolos que o representavam, durante as visitações do Santo Ofício. O desacato ao crucifixo, por exemplo, é um estereótipo antiquíssimo que foi atribuído a diferentes grupos marginalizados, ao longo da História, como ocorreu com os templários no século XIV. “O desrespeito ao crucifixo foi uma das infrações mais comuns na colônia, sobretudo nos dois primeiros séculos. (…)”, lembra a historiadora. O tratamento desrespeitoso aos santos, em especial à Virgem Maria, também era relativamente comum.
Havia ainda a tentativa de trazer a religião para a realidade do dia a dia, tratando figuras sagradas como membros da família ou amigos. Essa afetividade tinha outro lado, da ira e da revolta, quando o fiel se sentia decepcionado ou frustrado. Vejamos um caso: “o pernambucano Francisco Lopes revoltara-se contra uns bois que tinham entrado em sua roça, danificando-a. Canalizou sua ira contra os santos, arrenegando todos eles”, conta Laura de Mello e Souza. Para a historiadora, muitas vezes, a blasfêmia era uma forma de humanizar os santos e o próprio Deus, como ocorria nas tradições medievais europeias.
A Igreja, as obrigações religiosas, os santos e até as figuras de Jesus e de Deus representavam também os poderes estabelecidos que oprimiam os colonos. Laura destaca que “além do ódio e da revolta, sempre havia a saída da carnavalizadora, talvez mais irreverente ainda”. Se dermos um salto para os dias atuais, percebemos que não é a primeira vez que o uso da figura de Cristo em situações “profanas” causa desgosto aos religiosos: em 1989, foi proibida uma imagem de um cristo-mendigo (que mesmo assim desfilou coberta) no desfile de uma escola de samba do Rio de Janeiro; no ano passado, a representação da peça “Jesus Cristo Superstar”, causou reações muito negativas, porque o ator se apresentava sem camisa.
Enfim, quando se trata de crenças, religião e fé os ânimos e as sensibilidades costumam ser exacerbados. É curioso notar, entretanto, como o sagrado e o profano sempre estiveram intrinsecamente ligados na História do Brasil, um país rico em sincretismos e com forte religiosidade popular. Nos tempos coloniais, as missas eram espaço privilegiado para namoros, flertes e até relações sexuais, sem falar da ostentação de roupas e joias. Outro ponto interessante é que a teatralização e da espetacularização foram muito utilizadas para transmitir à população “as verdades da fé”, desde os tempos em que os primeiros jesuítas iniciaram a conversão dos indígenas.
Ainda hoje, quando diferentes grupos se apropriam de símbolos e práticas consideradas sagradas, seja em uma manifestação coletiva como a Parada Gay ou no mundo do entretenimento, tem-se a impressão que houve uma quebra na hierarquia social, uma ruptura violenta, como se houvesse um determinado limite que não pode ser ultrapassado. Essa sensação é curiosa, pois, como vimos, essa suposta linha divisória sempre foi tênue e nebulosa. O debate, no entanto, deve se estender por muito tempo: “desrespeito e deboche” ou “liberdade e protesto”?
Texto de Márcia Pinna Raspanti.
Cena da Parada LGBT que tem causado polêmica.
Referências bibliográficas:
– “História do Amor no Brasil” e “Histórias Íntimas”, de Mary del Priore.
– “Trópico dos Pecados”, de Ronaldo Vainfas.
– “O Diabo e a Terra de Santa Cruz”, de Laura de Mello e Souza.
Parabéns pelo artigo que vem nos lembrar o quanto é frágil os limites entre o sagrado e o profano, que as vezes se fundem num mesmo sentimento como forma de agir em defesa ou superação dos problemas enfrentados no dia a dia. Mais do que atos de desrespeito, mesmo que em alguns momentos possam nos chocar, são atos de leituras diferentes desses símbolos religiosos universais. E assim, acho eu, devem ser vistos.
Acompanho diariamente suas postagens com a maior admiração.
Obrigada, Gilvan, gostei muito dos seus comentários. Continue acompanhando o nosso blog!
Quando eu era criança, não se viam manifestações de qualquer tipo. Afinal, vivíamos em uma ditadura militar. Mas eu sempre ouvia meus pais e meus avós dizerem: “Nossa! Como esse mundo está perdido! Ninguém respeita mais nada. No meu tempo não era assim.”
Eu cresci, a ditadura acabou e as manifestações de qualquer tipo se tornaram constantes. Mas eu continuo ouvindo as pessoas, sobretudo as mais velhas, repetirem à exaustão a frase dita pelos meus pais e avós.
Como bem diz o seu artigo, sempre houve – desde o surgimento do Homem na Terra – grupos religiosos versus grupos desrespeitosos. E sempre haverá.
Eu, particularmente, sou contra ao uso de símbolos religiosos em qualquer tipo de manifestação, incluindo os programas de humor, por duas razões: primeiro, porque mesmo eu não acreditando nos dogmas religiosos, acho que a fé e as religiões (todas) devem ser respeitadas; e, segundo, porque usar da fé alheia para fazer protestos polêmicos ou chacota, é muito perigoso. Haja vista o que aconteceu na redação do Charlie Hebdo, em Paris, há alguns meses.
Há uma verdade incontestável: enquanto houver humanos na Terra, haverá provocações, conflitos e polêmica.
De novo, Márcia, parabenizo você pelo seu artigo. Acho o máximo a sua capacidade de sempre nos mostrar que sempre foi assim, usando a inquestionável História.
Sou seu fã.
Obrigada pelos comentários, Osvaldo! Muitas de nossas atitudes no presente têm raízes no passado. E, se queremos mudá-las ou apenas entendê-las, vale a pena conhecer a História.