Pós-feminismo, independência e machismo

O fim do século XX parece ter marcado uma ruptura na história da invisibilidade das mulheres. Caminhamos para um pós-feminismo no qual a ideia de cuidar, combinar, associar, de mixagem tornou-se um valor fundamental, ético e universal, pois homens e mulheres não podem viver uns sem os outros. Ora, cuidar implica aplicar atenções, tratar, ter cuidados, afeiçoar-se, dedicar-se, enfim, amar. Podemos imaginar um mundo melhor, para o século XXI, do que esse em que melhor “nos cuidássemos uns aos outros”?

Além de cuidar dos outros, seria importante o cuidar de si. Da própria cabeça e coração. Nos últimos vinte anos, um nó de contradições marcou o papel das mulheres na sociedade brasileira. Assim como as desigualdades sociais, as disparidades entre os sexos se acumulam, multiplicando os benefícios deles, em detrimento das carências delas. Em casa, as tarefas continuam desigualmente compartilhadas: mais de 90% delas asseguram a “ordem e o progresso”, embora já surjam algumas zonas de negociação, como o fogão ou as compras. Se o casamento se desfaz, elas sofrem imediata desvalorização no mercado matrimonial. Em tempos de crise, será mais fácil ver as mulheres ameaçadas pelo desemprego ou aceitando ocupação em tempo parcial. A superioridade feminina é apenas numérica: mais mulheres chefiam famílias monoparentais, aceitam situações de subordinação e correm atrás do modelo de perfeição estética imposto pela mídia.

Por que será? Tudo indica que o problema não é na rua, mas em casa. É lá que elas escondem os sentimentos masculinizados. Muitas protegem filhos que agridem outras mulheres. Não os deixam arrumar o quarto: “Homem não nasceu para isso”! A ideia é tornar marido e filhos dependentes delas em assuntos domésticos, pois muitas são dependentes financeiras deles. Outras calam sobre comentários machistas dos companheiros, incentivam piadas e estereótipos sobre a “burrice” feminina, cultivam cuidadosamente o mito da virilidade. Gostam de se mostrar frágeis, pois acreditam que eles, assim, sentem-se mais potentes. E de ser chamadas de xuxuzinho e tudo o mais que seja convite a comer. O título de cachorra é um elogio. Acreditam que a feminilidade é um estado natural, a ser conservado, e que todas as despesas aí investidas, até cirurgias que acabem por desfigurá-las, são um bom negócio. São coniventes com a propaganda sexista e com a vulgaridade da mídia. Na TV, aceitam temas apelativos e não se incomodam que estes encham a cabeça das filhas.

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Conclusão: há uma desvalorização grosseira das conquistas das mulheres por elas mesmas. Esse comportamento ajuda, certamente, a que se continue a cavar um grande fosso entre homens e mulheres, perceptível na questão salarial. É compreensível. Afinal, o chefe teve uma mãe machista! Ora, vivemos um tempo de transformações: na família, no trabalho, nas instituições. Nele, importa eliminar as pendências entre homens e mulheres, mas, sobretudo, aquelas enraizadas dentro de nós.

Embora maioria na fotografia da população, as mulheres brasileiras estão adormecidas. Falta-lhes um projeto, uma agenda que as tire da mesmice, que as arranque da apatia, que as engaje numa causa qualquer. O problema é que a vida está cada vez mais difícil. Trabalha-se muito, ganha-se pouco, peleja-se contra os cabelos brancos e as rugas, enfrentam-se problemas com filhos, pequenos, médios e grandes, ou com netos. Esgrime-se ainda contra a solidão, a depressão, as dores físicas e espirituais que fustigam os corpos em todas as idades. A guerreira de outrora luta, hoje, um embate miúdo e cansativo: o da sobrevivência.

Mas a luta pode ter um sentido. Há palavras cuja grafia parecem misteriosamente encarnar um. Assim, “independência”, menos do que lembrar o feriado de Sete de Setembro, significa para muitas de nós autonomia, liberdade em relação a alguém ou alguma coisa, ausência de subordinação e imparcialidade diante de críticas. Lendo a lista de sinônimos, fica-se com a impressão de que ela é quase como o grito do Ipiranga: é independência ou morte! Mas, mesmo que um sentimento vital nos empurre nesta direção, ser independente é bem mais complexo do que apenas respirar. Podemos, por exemplo, nos enganar sobre o grau de independência que desejamos ter. Sabemos, também, que mesmo os imbecis querem ser independentes, ou que há milhares de maneiras de se sentir independentes. Conclusão? É mais importante defender um valor e um significado para sua independência do que simplesmente decretar “independência ou morte”.

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Dessa perspectiva, ser independente significa bem mais do que ser livre para viver como se quer: significa, basicamente, viver com valores que façam a vida ser digna de ser vivida. Não basta um estado de espírito. Não basta, como diz o samba, “vestir a camisa amarela e sair por aí”. Tampouco basta sentir-se autônomo, fazendo parte do bando. É preciso algo mais. Ora, um dos valores que vêm sendo retomados pelos filósofos e que cabem como uma luva nessa questão é o da resistência. Na raiz da palavra resistere se encontra um sentido: “ficar de pé”. E ficar de pé implica manter vivas, intactas dentro de si, as forças da lucidez. Essa é uma exigência que se impõe tanto em tempos de guerra quanto em tempos de paz. Sobretudo nesses últimos, quando costumamos achar que está tudo bem, que está tudo “numa boa”; quando recebemos informações de todos os lados, sem tentar, nem ao menos, analisá-las, e terminamos por engolir qualquer coisa.

Resistir como forma de ser independente é, talvez, uma maneira de encontrar um significado no mundo. . Daí que para celebrar a independência, vale mesmo é desconstruir o mundo, desnudar suas estruturas, investigar a informação. Fazer isto sem cansaço para depois termos vontade de, novamente, desejá-lo, inventá-lo e construí-lo; de reencontrar o caminho da sensibilidade diante de uma paisagem, ao abrir um livro ou a porta de um museu. Independência, sim, para defendermos a vida, para defendermos valores para ela, para que ela tenha um sentido. Independência de pé, com lucidez e prioridades. Clareza, sim, para não continuarmos a assistir, impotentes, ao espetáculo da própria impotência. – Mary del Priore

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O final do século XX trouxe novas questões em relação ao feminismo. 

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