Pequena história da alimentação

 

Na Divina Comédia, Dante definiu a fome como o pior desastre. E ele sabia do que falava, pois viu a Europa ser varrida pela Peste Negra no século XIV. O desespero levava as pessoas a comer de tudo e muitos morriam com a boca cheia de capim. A mesma Idade Média que conheceu períodos de fome conhecia regras que regulamentavam a ingestão de alimentos. A gula era um pecado. Ditados populares recomendavam que antes de sentar à mesa, era preciso pensar nos pobres, agradecendo a Deus pela possibilidade de se alimentar corretamente. Evitar o desperdício era uma resposta à comida jogada fora pela aristocracia. A própria revolução francesa, teria sido detonada pela falta de alimentos. A frase de Maria Antonieta, “se não têm pão, deem-lhes brioche”, dirigindo-se aos camponeses famintos, sintetiza a importância que o pão tinha na alimentação de milhares de pessoas na Europa do Antigo Regime.

Inúmeros livros publicados entre os séculos XVI e XVII trazem justificativas médicas para o consumo de certos alimentos, assim como suas quantidades. É o caso das frutas. Antes servidas como “entradas” para acalmar o estômago, – caso do melão com presunto – quando misturadas ao açúcar, passam a ser sobremesas. Este é um momento em que o açúcar, anteriormente consumido como remédio, invade a Europa por força das exportações portuguesas. Ele passa a integrar receitas feitas com ovos e farinha, determinando uma dualidade até hoje respeitada no Ocidente: a do salgado e doce, que não existe na cozinha asiática. O açúcar, sempre no final. De especiaria, o açúcar passa a aditivo de três bebidas que vão “estourar” na Europa: o chocolate, o café e o chá, que disputavam com as bebidas alcoólicas a preferência de consumo.

O chocolate é “achado” pelos espanhóis quando da conquista do México. A bebida tinha um papel relevante nas cerimônias religiosas e os grãos de cacau eram tão valorizados que serviam como moeda de troca. O cacau era misturado pelos indígenas à pimenta, frutas, milho ou alucinógenos. E usado, ao mesmo tempo, como medicamento, afrodisíaco ou alimento. Ao ser misturado ao açúcar, – reza a lenda que religiosos foram pioneiros no experimento – esta bebida antes amarga e picante se tornou uma verdadeira moda entre os habitantes espanhóis da América. Da Espanha, ela passa à França e Veneza.

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Também o café, planta arbustiva, vinda do Iêmen, precisou do açúcar. Exportado pelos venezianos, ele invadiu a Europa a ponto de, aos finais do século XVIII, não haver quem não conhecesse o café com leite. Tido por um santo remédio, era recomendado pelo médico de D. João V, rei de Portugal, por sua capacidade de “confortar a memória e alegrar o ânimo”. Cafés se multiplicam na Itália e depois na Inglaterra, com o nome de coffee-houses. Estes eram lugares onde se bebia café numa verdadeira liturgia: em silêncio, entre pessoas cultas, jogando damas ou cartas. Filósofos iluministas como Voltaire e Montesquieu os frequentavam.

No século XVII, o chá trazido pela Companhia das Índias invadiu o mercado inglês, tornando-se a bebida cotidiana de ingleses de todas as classes sociais. Antes misturado ao açúcar e vendido como remédio para os males de estômago, mais do que uma mania, o chá virou um modo de vida. Seu uso atingiu todas as classes sociais que o identificavam como um desintoxicante contra o uso do gim e da cerveja. A utilidade deste efeito, fez com que o chá fosse incorporado à dieta dos trabalhadores e operários, sobretudo nos países protestantes. A Europa dos séculos XVI ao XIX consumiu café, chá e chocolates, sempre acompanhados de bolos e outras doçuras, impulsionando o consumo de açúcar.

Nascia neste momento a noção de gosto na culinária. Antes associado ao pecado da gula, o ato de comer sofria um controle minucioso. Mas com a chegada de produtos das Américas e da Ásia, a conquista dos oceanos, a viagem de alimentos como a batata, o tomate, o milho, a pimenta, e uma concentração de renda na mão dos ricos, a noção de bom gosto alimentar se irradiou. Um “saber” sobre a cozinha se formalizou. Nesta época, livros de cozinha batiam os 300.000 exemplares vendidos. Comer tornou-se menos encher o estômago e mais, escolher segundo o gosto. O bom gosto. Certos legumes passaram de um nível a outro, graças às elaborações refinadas: a prosaica batata, importada da América, primeiramente servida aos porcos, depois de alimentar massas de camponeses, ganhou status de alimento fino, graças às receitas do cozinheiro francês Louis Parmentier.

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A diferença entre EUA e Europa é que enquanto a Europa Ocidental levou centenas de anos inventando a gastronomia, os EUA inventaram a gastro-anomia.  A chegada do Mac Donalds aconteceu quando dois irmãos abriram o primeiro drive-in na cidade de Arcádia, na Califórnia. Nascia, assim, o conhecido fast food, ou seja, um alimento concebido para ser consumido dentro dos automóveis, em função do grande boom da indústria automobilística do início do século XX. Por exemplo, o hambúrguer, originário da cidade de Hamburgo, era um bife tártaro de carne crua, que ao chegar, em 1904 nos EUA, vai ser cozido, nascendo assim o hambúrguer, como a refeição que podia ser rapidamente preparada e ingerida em 15 segundos. A preocupação da empresa era converter o alimento numa cadeia industrial tão eficiente quanto a cadeia automotiva. Era o Taylorismo – administração que visava o aumento da eficiência – aplicado à alimentação: um operário deveria se alimentar nos mesmos 15 segundos em que encaixava uma porta num automóvel na linha de montagem.

A descrição dos primeiros fast food é bastante elucidativa: as pessoas esperavam em fila, umas atrás das outras. Os especialistas chamam isso de gastro-anomia, onde anomia é sinônimo de disfunções variadas. O resultado é que 30% dos americanos são obesos. E no Brasil as consequências são evidentes: em 2006, 42,7% da população estava acima do peso. Em 2011, esse número passou para 48,5%.

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Há diferentes representações em torno do ato de se alimentar. Antigamente, o comer acontecia em momentos regrados e reuniam as pessoas em torno da comida, com grande carga simbólica. Já nos dias de hoje, comemos abundantemente e individualmente. Nesta dinâmica o lugar da televisão exerce fundamental importância. Em muitas casas, as pessoas comem na frente da televisão. Nos restaurantes, ela fica ligada. Isso significa ingerir comida, sem nenhum investimento simbólico, sem nenhum prazer de estar junto ou na descoberta da refeição.

Depois de respirar e de beber água, alimentar-se é a mais básica das necessidades humanas. Mas como “nem só de pão vive o homem”, a alimentação, além de uma necessidade biológica é um complexo sistema simbólico de significados sociais, sexuais, políticos, religioso, éticos e estéticos. – Mary del Priore

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“Rodolfo II, pintado como Vertumnus, deus romano das estações”, de Giuseppe Arcimboldo (1590).

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