Pelo buraco da fechadura: um olhar estrangeiro

Comer com as mãos, arrotar, defecar ou urinar publicamente são hábitos banidos de nosso convívio. Porém, as práticas em torno das necessidades fisiológicas, assim como o uso da água e da indumentária percorreram uma longa estrada antes de serem adestrados. E a educação do corpo teve que se dobrar às fórmulas de contenção, contrariando o desejo e os apelos da “natureza”. A palavra higiene, por exemplo, não constava dos dicionários do século XIX, momento em que viajantes estrangeiros passaram por aqui. Nem por isso, o tema lhes passou despercebido.

 Casas? Essas eram “repugnantemente sujas”, segundo a inglesa, Maria Graham. Raramente o interior era limpo. Quando muito varrido com uma vassoura de bambu. Água no chão?  Nunca. As paredes das casas, apenas caiadas, tornavam-se amarelas. A fim de tornar os quartos toleráveis e deles expulsar o mau cheiro, costumava-se queimar plantas odoríferas. Tais odores também mantinham afastados os “atacantes invisíveis”: mosquitos, baratas e outras imundícies. Os penicos estavam em toda a parte e seu conteúdo, sempre fresco, jogado nas ruas e praias. Acostumado aos “gabinetes à inglesa”, o comerciante inglês John Lucock queixava-se que entre as piores inconveniências domésticas havia certa

“tina destinada a receber todas as imundícies e refugos da casa, que, nalguns casos, é levada e esvaziada diariamente, noutros, somente uma vez por semana, de acordo com o número de escravos, seu asseio relativo e pontualidade, porém sempre carregado, já sobremodo insuportável”.

Quartos? Os sobrados costumavam oferecer um para os pais e camarinhas apertadas para as moças. As janelas pouco se abriam e não se expunham ao sol as camas úmidas de suor. Na alcova tinha mosquiteiro, colchão rijo, travesseiros redondos e “excelentes lençóis”. Sinal de que, apesar da sujeira, a roupa branca era valorizada.   

Na Europa, as camas com baldaquino e cortinas fechadas ofereciam a possibilidade de isolamento. Aqui, só chegaram mais tarde, aparecendo nos ex-votos pintados. Chaves eram artefatos caríssimos e as portas, não se trancavam. Quando muito, eram seguras por tramelas. Respeitava-se a regra: ao trocar de roupa, ninguém olhava. Nas classes populares, dormia-se em redes ou esteiras.

Quanto aos habitantes, a maioria deles deambulava pelas ruas vestidos com “casacas pretas, velhas e coçadas”. As calças, nos joelhos eram atadas com fivelas de brilhantes-fantasia, meias de algodão nacional, e a cabeça coberta com “uma peruca empoada sobre que punham um enorme chapéu armado já sebento, geralmente ornado de um tope”. O número de pessoas de aparência respeitável, segundo Luccok, era diminuto. E pior, o que se mostrava na rua, não era realidade portas adentro. Para fazer visitas, os homens enfiavam-se em tricórnios e grudavam fivelas aos sapatos. Mas em casa mostravam-se: “com barba de vários dias e os cabelos pretos em franco desalinho, embora besuntados de gordura e sem roupa alguma sobre sua camisa de algodão. É verdade que esse traje é bem feito, ornamentado com trabalhos de agulha, especialmente sobre o peito; mas frequentemente o põem de peito aberto e com as mangas arregaçadas até os ombros”. Curtas, as calças curtas deixavam as pernas nuas e “os pés metidos em tamancas. Nada disso é lá muito correto”, ponderava.

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O hábito de estar semi-vestido era também observado na hora das refeições: tiravam sapatos, meias e outras “peças que o calor tornasse opressivas, guardando apenas o traje que a decência requer”, reportou Luccok. Garfos e facas começavam a serem usados, embora fossem de modelo antigo, pequeno e desaparelhado:

“Comem muito e com grande avidez e, apesar de embebidos em sua tarefa ainda acham tempo para fazer grande bulha. A altura da mesa faz com que o prato chegue ao nível do queixo; cada qual espalha seus cotovelos ao redor e colocando o pulso junto à beirada do prato, faz com que por meio de um movimento hábil, o conteúdo todo se lhe despeje na boca. Por outros motivos além deste, não há grande limpeza nem boas maneiras, durante a refeição; os pratos não são trocados […] por outro lado, os dedos são usados com tanta frequência quanto o próprio garfo. Considera-se como prova incontestável de amizade alguém comer do prato do seu vizinho […] antes do final da refeição, todos se tornam barulhentos, exagera-se a gesticulação e despedem punhadas no ar, de faca ou garfo, de tal maneira que um estrangeiro pasma que olhos, narizes e faces escapem ilesos”, registrou Luccock para concluir mais à frente:

 “É de observação vulgar que os hábitos pouco limpos costumam seguir de perto a ignorância […] Poucos vocábulos foram tão empregados quanto sujeira, imundície e expressões sinônimas, mas não é possível fazer-se de outro modo se quisermos de fato representar a situação real e geral do país e de seus habitantes”.

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John Luccock ainda afirmava que as abluções não eram “nada apreciadas pelos homens. Os pés são geralmente a parte mais limpa as pessoas. Os rostos, mãos, braços, peitos e pernas que, todos eles andam muito expostos em ambos os sexos, raramente recebem a benção de uma lavada”.

A sujeira causava doenças de pele. Em sua correspondência com familiares em Portugal, o vice-rei, marques de Lavradio se vangloriava da saúde, acrescentando que “conserva-se bem sem sarnas, nem perebas, moléstia que aqui padecem todos e só não tenho escapado aos bichinhos do pé, porque estes me têm perseguido barbaramente.”.

De origem latino-americana esta espécie de pulga ganhou nomes populares: zunja, xiquexique, jatecuba. Habituado à pele mais fina e tenra entre os dedos, era encontrado em currais, chiqueiros e praias. O mercenário alemão Carl Seidler foi uma das vítimas desses “imundos hóspedes”: “Ainda me lembro bem que havia soldados que extraíam 30 a 40 saquinhos desse bicho, cheio de ovos, cada um dos quais saquinhos deixava um buraco do tamanho de uma ervilha, extração muito dolorosa e já no dia seguinte número igual se alojara, notadamente nas unhas e nos calcanhares. Para evitar isso, muitos de nós limitávamos a abrir o saquinho cheio daquela criatura do diabo e lhe deitávamos encima um pouco de mercúrio”.

Outra praga a açodar os colonos eram os piolhos. Catá-los era prática que reunia alegremente as pessoas, mas, considerada pelos estrangeiros, como “repugnante”. Distração que tinha inúmeros entusiastas, a vagarosa fricção, acompanhada ou não por estalos, era executada à sombra, depois das refeições. Ao desembarcar no porto de Maceió, o pastor americano Daniel Kidder estranhou a cena que assim descreveu:

 “Um ou dois rapazes estavam deitados sobre a areia […] as mulheres estavam sentadas ao pé deles, executando algum carinhoso mister em suas cabeças. Se essas mulheres se ocupavam em tatear acidentes frenológicos ou se entregavam ao trabalho de natureza menos científica, não cuidamos de indagar”. E com ironia: “Felicitamo-las, mentalmente, por terem elas diante de si um lindo dia para o desempenho de sua penosa tarefa”.

A sensibilidade olfativa dos colonos estava longe daquela que já se instalara na Europa, pois mesmo para limpar, usavam-se produtos fétidos. Os tintureiros, por exemplo, misturavam urina e vinagre para fixar as cores dos tecidos e couros. Lavava-se roupa com folhas saponáceas e passava-se nela bosta de cavalo para fixar as cores. Para tirar manchas, usava-se “fel de boi” ou cebola bem esfregada. O mau cheiro dos produtos de limpeza não impedia, contudo, que se tomassem certos cuidados. Contou-nos Jean-Baptiste Debret, em 1816,

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“As lavadeiras brasileiras, aliás, muito mais cuidadosas do que as nossas, têm a vaidade de entregar a roupa não somente bem passada e arranjada em ordem, dentro de uma cesta, mas ainda perfumada com flores odoríficas”. Asseio, não era se lavar. Mas vestir roupa limpa!

Maus modos também eram notados. Defecar e urinar em público, expondo as partes íntimas, chocava. Que o diga John Barrow, que registrou o hábito das mulheres urinarem “descaradamente” nas ruas do Rio. O certo era fazê-lo contra um muro, cobrindo o sexo, na tentativa de proteger-se dos olhares alheios. Mas, o exemplo vinha “de cima”. Eduardo Theodor Boesche contratado como cadete de cavalaria, com quartel na Praia Vermelha, assistiu a uma cena, cujo protagonista principal foi ninguém menos do que o jovem imperador D. Pedro I:

            “Ao romper do dia chegavam a cavalo D. Pedro e sua consorte, acompanhados de camaristas e generais. Não há talvez no mundo soldado tão entendido como o Imperador no manejo prático e exercício da espingarda […] De resto, seus modos são grosseiros, falta-lhe o sentimento das conveniências, pois vi-o uma vez trepar ao muro da fortaleza para satisfazer uma necessidade natural, e nesta atitude altamente indecorosa assistir ao desfile de um batalhão em continência. Tal espetáculo deixou atônitos a todos os soldados alemães, mas o imperial ator conservou inalterável a calma”.

Até as primeiras décadas século XIX, “da higiene pública incumbiam-se as águas da chuva, os raios de sol e os diligentes urubus”, resumiu Capistrano de Abreu. As relações com a higiene e o pudor refletem como os processos civilizatórios modelaram gradualmente as sensações corporais, aumentando seu refinamento, desenrolando suas sutilezas. E na observação da falta delas, nada escapou aos viajantes. Pelo buraco da fechadura, viam os brasileiros ainda bem longe das “boas maneiras”. Mary del Priore

6 Comentários

  1. Paul Gaiser
    • Márcia

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