Por Mary del Priore.
Páscoa: momento de renovação, de ressurreição, ou seja, de viver outra vez. Não a toa, seu símbolo é o ovo. Ovo que é metáfora de fecundidade. Tal como na tradição popular, é preciso ter boa mão para batê-los ou para dispô-los no ninho. Vivemos a Páscoa depois de atravessar, como num rito de iniciação, a lenta e tristonha semana da Paixão, para explodir, ao final, num Domingo festivo. No passado, era ao longo desses dias de introspecção e culpa que os fiéis se reuniam nas igrejas para rezar. Mergulhadas numa suave penumbra, aqui e ali entrecortada pela luz de velas, às escuras naves barrocas abrigavam casais que se aproveitavam do “escurinho” para trocar afagos. Segundo um viajante estrangeiro de passagem pelo Rio de Janeiro em 1846, era durante a consagração, momento mesmo em que as tais velas eram apagadas para induzir o fiel a maior recolhimento, que se multiplicavam os carinhos. Beijos, pisadelas e beliscões eram trocados, segundo as normas de namoro de antigamente
Por trás da festa comercial, feita de chocolates e coelhos de pelúcia, há, portanto, muita matéria para reflexão. A Páscoa é, ainda hoje, momento de ritualização e regeneração. Ritualização pois ela, como mito de eterno retorno, repete-se todo o ano. Sua ideia de reinicio perpétuo de um ciclo, (feito de vida, morte, ressurreição) se reproduz nos ritmos cósmicos e naturais: colheitas, dia e noite, as quatro estações. Mais. Suas leis de repetição projetam ordem e estabilidade num mundo em constante mudança ou em permanente desequilíbrio. A repetição nos convida a pensar que devemos caminhar para um outro mundo. Um mundo melhor. Ora, todas as passagens nos estimulam a criar utopias. Pouca importa o nome que recebam. O essencial é exatamente que a nova passagem seja ocasião de nos colocarmos frente à inextinguível utopia da mudança. Da transformação. Só a utopia é capaz de nos fazer crer nos valores do progresso.
Estamos deixando para trás um mundo de finita modernidade e terríveis violências. Dramas de guerras e genocídios, uma humanidade barulhenta e ao mesmo tempo surda, o crescente individualismo, a ética do dinheiro, enfim, tudo isso e mais um pouco é o legado do tempo que se encerra. “Nada de novo sob o sol”, diria o Eclesiastes. Mas esperemos que o ciclo de repetições do qual a Páscoa faz parte, não nos traga o mesmo mundo que já conhecemos.