Páscoa: tempo de renovação

Por Mary del Priore.

Páscoa: momento de renovação, de ressurreição, ou seja, de viver outra vez. Não a toa, seu símbolo é o ovo. Ovo que é metáfora de fecundidade. Tal como na tradição popular, é preciso ter boa mão para batê-los ou para dispô-los no ninho. Vivemos a Páscoa depois de atravessar, como num rito de iniciação, a lenta e tristonha semana da Paixão, para explodir, ao final, num Domingo festivo. No passado, era ao longo desses dias de introspecção e culpa que os fiéis se reuniam nas igrejas para rezar. Mergulhadas numa suave penumbra, aqui e ali entrecortada pela luz de velas, às escuras naves barrocas abrigavam casais que se aproveitavam do “escurinho” para trocar afagos. Segundo um viajante estrangeiro de passagem pelo Rio de Janeiro em 1846, era durante a consagração, momento mesmo em que as tais velas eram apagadas para induzir o fiel a maior recolhimento, que se multiplicavam os carinhos. Beijos, pisadelas e beliscões eram trocados, segundo as normas de namoro de antigamente 

Nada disso devia acontecer por acaso. Amor e sagrado sempre andaram juntos. Sabemos que as forças do amor, causa de toda a vida, são divinas e misteriosas.  E é o amor a força que nos permite mergulhar na noção de divindade, razão e fonte de toda a criação universal. Como diz o poeta, o amor não é apenas o sentimento que designa a solicitude em relação ao próximo ou a atração e a ternura  partilhadas entre seres humanos. O amor é uma corrente forte e profunda que nos move e dirige imperiosamente em direção a objetivos que estão além de nossa existência e de nós mesmos. É essa vontade divina que nos leva a pensar no bem estar de alguém, com toda a riqueza de manifestações e possibilidades. O amor diz respeito a vontade de dar e partilhar, de fazer o bem  de maneira desinteressada e sem pré condições. Ele nos incentiva ao abandono de nós mesmos em benefício de outrem, sem  qualquer desejo de recompensa. Finalmente, amor e sagrado andam juntos, pois é o primeiro que nos incita a identificar no segundo, ou seja, no sentido divino, uma força que não podemos medir nem contar. Força invisível e desconhecida  que é a razão e a fonte verdadeira da vida e do universo.

Por trás da festa comercial, feita de chocolates e coelhos de pelúcia, há, portanto, muita matéria para reflexão. A Páscoa é, ainda hoje, momento de ritualização e regeneração. Ritualização pois ela, como mito de eterno retorno, repete-se todo o ano. Sua ideia de reinicio perpétuo de um ciclo, (feito de vida, morte, ressurreição) se reproduz nos ritmos cósmicos e naturais: colheitas, dia e noite, as quatro estações. Mais. Suas leis de repetição projetam ordem e estabilidade num mundo em constante mudança ou em permanente desequilíbrio. A repetição nos convida a pensar que devemos caminhar para um outro mundo. Um mundo melhor. Ora, todas as passagens nos estimulam a criar utopias. Pouca importa o nome que recebam. O essencial é exatamente que a nova passagem seja ocasião de nos colocarmos frente à inextinguível utopia da mudança. Da transformação. Só a utopia é capaz de nos fazer crer nos valores do progresso.
Estamos deixando para trás um mundo de finita modernidade e terríveis violências. Dramas de guerras e genocídios, uma humanidade barulhenta e ao mesmo tempo surda, o crescente individualismo, a ética do dinheiro, enfim, tudo isso e mais um pouco é o legado do tempo que se encerra. “Nada de novo sob o sol”, diria o Eclesiastes.  Mas esperemos que o ciclo de repetições do qual a Páscoa faz parte, não nos traga o mesmo mundo que já conhecemos. 
Precisamos com urgência tornar a utopia ativa, agindo sem demora e como diz o filósofo, “prestando contas à história”. O mito do eterno retorno, mito embutido nos ritos da Páscoa, no símbolo do ovo, significa não o paraíso perdido, mas aquele que podemos e pudermos construir. Para vivermos o desafio de nos encontrar com a vida é preciso nos inserir numa dinâmica que nos transforme em seres melhores do que somos. Aproveitando momentos como esse para nos liberar de toda a tradição que seja negativa.  Despojando-nos de toda a resignação diante do horror. Abandonando todo o comodismo perante o desespero. Para isso, além de “ter boa mão”, como recomenda a tradição popular, melhor seria “dar a mão”.  
ovo
Ovos: símbolo de fecundidade
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