Paixão, ciúme e crime

A Justiça coloca à disposição do historiador um número ilimitado de processos, nos quais as paixões, levadas às últimas consequências, deixaram suas marcas. No passado, mulheres foram acusadas por seus companheiros de “se adulterar”. Dedo em riste, eles eram definidos por elas como “vagabundos”, possuidores de péssimo gênio, “ébrios”; e, na resposta deles, elas, são taxadas de “sem moral”, “decaídas”, relaxadas e dadas a brigas com vizinhos. Não poucos casais, criavam filhos gerados por outro companheiro e em muitas famílias, os filhos não se pareciam uns com os outros. Elas os deixam ou são deixadas quando eles partiam para trabalhar em outra localidade, longe da moradia onde tinham família. A “desvirginada” era uma vergonha. Ela impedia a moça pobre de fazer um bom casamento, sublinhando o bordão de que “a virgindade é um cristal que não devia ser quebrado à toa”.

O crime passional era uma modalidade de violência bastante presente nas camadas desfavorecidas. E sobre suas consequências, havia duas escolas. Os criminalistas clássicos, para quem, mesmo no paroxismo da mais violenta paixão, não ocorria suspensão das faculdades que ajudavam a discernir o bem do mal. E os adeptos da Escola Positivista Italiana, liderada por Lombroso, que despojavam de responsabilidades o criminoso passional, cujo tipo puro seria masculino. Certas paixões – explicavam – se identificam com determinadas formas de loucura, podendo anular a vontade, deduzindo-se daí a responsabilidade penal. Ferri, criminalista desta escola, explicava que:

“A última categoria, é a dos criminosos por impulso de uma paixão antissocial, como o amor e a honra. Para esses indivíduos toda a penalidade é evidentemente inútil no ponto de vista do contra-impulso psicológico, pois as próprias condições de tempestade psíquica, sob as quais eles cometem o crime tornam impossível toda a influência intimidante da ameaça legislativa”.

Tal tipo de crime embalado na onda de autores românticos com sua ênfase no amor e na paixão, justificava-se na proximidade com a loucura. Quem não lembra do caso da fera da Penha? “Louca de amor, matou…”, anunciavam as manchetes! O italiano Gabrielle D’Annunzio é um, entre tantos autores, cuja obra está cheia de situações em que o amor e o ciúme estão na raiz dos gestos mais impulsivos. O Direito francês, na época, por sua vez, permitia que tanto homens quanto mulheres fossem definidos como criminosos por paixão ou amor. Psicólogos e juristas se preocupavam em mostrar que o chamado crime passional era uma mera expansão brutal do instinto sexual que cabia à civilização controlar, sendo este instinto ativo no homem, enquanto na mulher ele se manifestava pela passividade. E a convicção da inércia feminina era tão forte, que pouco a pouco, ela vai sendo excluída dos crimes passionais. Exemplo emblemático desta maneira de pensar – e que cito no livro – é o da prostituta Anita Rodrigues, que atinge seu amante, com vitríolo, em 1915. Tida por mulher ordeira, que tinha pelo “ofendido grande afeição”, Anita se vê explorada, batida e sob am ameaça de abandono por não prover seu cáften, César Virtulli, de quantias vultosas. Tal fato, segundo o advogado de defesa, lhe teria despertado “a ferocidade do ciúme pela tirania da paixão”. Ele se utiliza de um argumento muito em voga, nestes tempos: o da loucura momentânea. É interessante percorrer, nas linhas do processo, a forma como o amor podia tornar-se uma arma, nas mãos de “uma pobre artista atirada ao comércio do amor”:

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“Calcando dores e sofrimentos que se confortavam, muitas vezes, nos braços do ente caro, neles Anita Teodora Rodrigues descobriu um oásis com uma larga sementeira de esperanças que se lhe havia de destrançar na mais luxuriante vegetação de venturas”.

Imaginar que os embalos de um tal êxtase nesse enlevo supremo mergulhava-se em arroubos d’alma, quando então seu amante César Virtulli que lhe roubara enganadoramente as carícias e o afeto, a carne estuante delas saciado, sem as costumeiras compensações que ela as não queria e rebatia, César Virtulli consertou em abandoná-la, o que de fato fez. Eis que se vendo ingratamente repelida, magoada no seu amor próprio, o espírito convulsionado explodiu, coando-se através as estratificações das suas condições orgânicas, físicas e sociais. Desencadeou-se, assim, a procela arrebatadora da erotomania; o ciúme derivando de desordens nervosas anteriores; a idéia fixa, o delírio transitório irrefreável; finalmente a privação absoluta dos sentidos e inteligência […] Atirada ao comércio de seu próprio corpo, teria encontrado em César Virtulli um homem que envolvendo com seus carinhos, ardentes beijos, afetuosos e lúbricos abraços este organismo impenetrável às sensações do prazer e do gozo e recolhendo o rescaldo de seus sentimentos atormentados, pode despertar no fundo de um coração já amortecido, as doçuras de um amor puro e meigo e os transportes de uma verdadeira paixão”.

Paixões contrariadas podiam obscurecer a razão e eis como Anita, “abandonada por seu amante, insensível a todas as tentativas de reconciliação, ferida em seu amor próprio, impelida pelo ciúme, concebeu uma reação. A dor e o desespero teriam lhe lançado em seu espírito fraco e doentio, a idéia fixa da vingança que transmigrou do cenário fisiológico para o patológico, que transformando-se em idéia delirante explodiu na noite de 30 de maio, impelindo seu braço hesitante ao vitriolamento do amante”.

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Pobre César…Pouco restou dele depois do gesto feito com o tal “braço hesitante”. Quanto a Anita, depois de longos debates que pendiam para sua absolvição, foi punida com prisão por dois anos. Fora vítima de uma paixão erótico-patológica. Como ela, outras tantas mulheres atiraram, esfaquearam e mataram seus amantes, companheiros, concubinos. Outras, na defesa da virgindade ou da fidelidade conjugal, também não hesitaram em lançar mão de armas brancas – as facas de cozinha eram muito úteis – ou de fogo, para manter limpa a sua honra. Aí tinham que enfrentar o machismo de juízes que achavam que a conivência da vítima em acender o desejo masculino, era total. Era o fantasma das “allumeuses”. A mulher tinha que apresentar as marcas mais profundas possíveis de sua resistência, para provar inocência.  Já eles, as matavam à pauladas, à facadas, aos murros, rasgando-lhes muitas vezes o sexo.

Outro quadro: na série jornalística “No jardim do crime”, publicada na Gazeta de Notícias, João do Rio conta sua visita à Casa de Detenção da capital, onde entrevista “assassinos por amor”. Ouve Salvador Firmino, negro sexagenário, que lhe conta como matou Silvéria, por quem deixara sua mulher e que o deixara por certo Herculano. Ouve Abílio Sarano que lhe declara de chofre, “- matei minha mulher”. Era o personagem do crime do Catete; “dias depois de nosso casamento minha esposa confessou-me que tinha sido gozada por um negociante amante de sua mãe”. Ouve Alfredo Paulino, que se casara aos dezesseis anos e que matara o rival em sua própria casa. Entrevista Herculana que, depois de insultada – “ele me disse uma porção de nomes”- cortara a garganta, ao amante enquanto este dormia, acendera todas as velas que encontrara e começara a cantar. E conclui, “com os corações em sangue, vi uma coleção de assassinos, desde um velho lamentável até uma criança honesta, postos fora da sociedade pelo desvario, pela loucura que a paixão sopra no mundo”.

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Dentre os crimes passionais, o mais debatido era o cometido como reação ao adultério. Apoiado na tradição machista e patriarcal, ele seria predominantemente masculino. Nesta tradição, honra manchada se lavava com sangue. Já o adultério masculino normalmente provocava acomodação por parte das mulheres, especialmente nas camadas médias e burguesas, temerosas de uma ruptura que as obrigasse a mudar de vida. Entre nós, de acordo com o Código Penal de 1890, só a mulher era penalizada e punida por adultério, com prisão celular de 1 a 3 anos. O homem, só era considerado adúltero no caso de possuir concubina teúda e manteúda e isto era considerado um assunto privado. E mesmo assim, poucos eram punidos…- Mary del Priore.

a fera da penha

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