Pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados

As famílias da classe patriarcal também tinham o seu lugar na sociedade colonial: famílias dos senhores de engenho, dos traficantes de escravos, dos comerciantes de “grosso trato” – que eram negociantes responsáveis pelas mercadorias que entravam e saíam da Colônia -, das autoridades portuguesas e seus descendentes no Brasil. Nessas famílias, vigorava o  modelo europeu e católico. Pais casados na Igreja e filhos batizados. Todos vivendo dentro das estritas regras do catolicismo.

A família senhorial apresentava algumas características também encontradas no restante da sociedade. Elas podiam ser “extensas”, englobando familiares e agregados, parentes pobres ou solteiros, filhos bastardos e concubinas. Ou elas podiam ser, ainda, famílias de elite monoparentais, ou seja, aquelas em que havia, apenas, um dos membros do casal. Essas eram em geral lideradas por viúvas que viviam com seus filhos e irmãos ou irmãs solteiras. Em ambos os casos eram comuns as núpcias entre parentes próximos, primos e até meios-irmãos. Para que o casamento se realizasse era preciso pedir ao bispo a “dispensa por consaguinidade”. Como a Igreja proibia o matrimônio entre parentes por laços de sangue ou por laços espirituais (caso de padrinho e afilhada, por exemplo), cabia às autoridades religiosas examinar cada pedido de dispensa.

Eram raros, no entanto, os pedidos negados. Graças aos casamentos “endogâmicos”,  as famílias senhoriais aumentavam sua área de influência, aumentando também suas terras, escravos e bens. O casamento com “gente igual” era altamente recomendável e poucos eram os jovens que rompiam com essa tradição. Vários “manuais de casamento” escritos em Portugal  nessa época – livros em que se prescreviam as melhores regras para consumar o matrimônio com sucesso -, ensinavam que o certo  era procurar a harmonia conjugal entre pessoas da mesma situação social. O autor de um  “Guia de casados”, D. Francisco Manoel de Melo, recomendava em 1747:

“uma das coisas que mais podem assegurar a futura felicidade dos casados, é a proporção do casamento. A desigualdade no sangue, nas idades, na fazenda (bens patrimoniais) causa contradição, discórdia. […]  Perde-se a paz e a vida é um inferno. Para a proporção dos pais, convém muito a proporção do sangue; para o proveito dos filhos, a da fazenda; para o gosto dos casados. a das idades”.

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O “Guia” queria dizer que as pessoas não podiam ter origens sociais ou religiosas diferentes; casamento de pobre com rico, de branco com negro ou de católico com judeus ou muçulmanos, etc. era severamente criticado. Daí ele falar tanto em “proporção” isto é, em harmonia, igualdade . A igualdade da “fazenda”, isto é dos bens possuídos, era fundamental para assegurar que os filhos continuassem tão ricos quanto os pais. A diferença de idades era combatida, pois se um velho rico casava com uma mulher bem mais moça havia o risco desta, depois de enviuvar, ir gastar seu dinheiro com outro homem mais moço. Daí termos tantos ditados populares que, até hoje, condenam esse tipo de matrimônio:

Velho apaixonado, com pouco está cansado

Velho com amor, morte em redor”!

E os ditados que recomendam o que seria “certo”:

Casar com os de sua igualha”,

“Casa tua filha com o filho de teu vizinho”,

“Casar e comprar, cada um com o seu igual”!

O dia a dia das famílias senhoriais transcorria em meio a grande número de pessoas. As mulheres pouco saiam de suas casas, empregando seu tempo em bordados e costuras, ou no preparo de doces, bolos e frutas em conservas. Eram chamadas de “minha senhora”, pelos maridos. Sentadas em esteiras no chão, com as pernas cruzadas, vestidas simplesmente com camisolões e chinelos, elas passavam as horas em trabalhos manuais. À sua volta, crianças brancas e escravas engatinhavam e brincavam juntas.

A maior parte das fazendas e engenhos possuía capela particular onde diariamente, ao cair da tarde, se rezava o terço. Os escravos domésticos podiam acompanhar a reza. Também era comum grudarem-se orações nas portas e janelas da casa grudavam-se orações para proteger a família de ladrões, raios, tempestades e assassinos. E diante dos altares enfeitados com flores, velas acesas  e com os santos de devoção, os fiéis faziam pedidos e prometiam mundos e fundos em troca de uma boa colheita. Ou de um bom marido:

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Dai-me noivo, São João, dai-me noivo, dai-me noivo que me quero casar”

Casai-me, casai-me, São Gonçalinho que hei der rezar-vos amigo santinho

Como conta o sociólogo Gilberto Freyre no livro Casa Grande & Senzala, que citamos no início, crianças escravas e livres costumavam brincar juntas com brinquedos de pano ou madeira, por dentro da casa-grande. Brincavam também de pião, pipa e o jogo do beliscão que era . As crianças escravas muitas vezes serviam de “cavalinho” para os filhos do senhor de engenho e recebiam chicotadas com galhos de goiabeira. As amas de leite, negras, ensinavam-lhes músicas de roda e contavam estórias sobre o Quibungo: bicho horrível, vindo da África e comedor de criancinhas! Os pequenos também tinham medo do Cabeleira, sobre o qual as amas cantavam:

Fecha porta, Rosa,

cabeleira, eh-vem

pegando mulheres,

meninos também… .

Enquanto as crianças escravas com mais de sete anos, começavam a trabalhar na roça, os meninos brancos iam estudar com professor particular, em geral um padre. As meninas, começavam aprender um pouco de música, a bordar, a rezar e a esperar marido. “Ler e contar” todos tinham que saber. As orações da manhã e da noite também. Apesar disso tudo, as crianças das famílias de elite tinham fama de ser horrivelmente mal criadas. Muitos dos viajantes europeus que passaram pelo Brasil entre os séculos XVIII e XIX, apontaram suas impertinências e caprichos.

No final do século XIX, o grande escritor Machado de Assis deixou-nos um retrato doloroso desta realidade em Bentinho, o personagem principal das Memórias póstumas de Brás Cubas.:

“Desde os cinco anos, merecera eu a alcunha de “menino-diabo”. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque da casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe o dorso, com uma varinha na mão fustigava-o, dava-lhe mil voltas a um e outro lado e ele obedecia – algumas vezes gemendo – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um “_ ai, nhonhô” – ao que eu retorquia “ _cala a boca, besta”! Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelos rabichos das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade; em particular dava-me beijos”

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Essa atitude dos pais, tolerando a estupidez e a malvadeza dos filhos, parece que não mudou muito no Brasil. Será que mudou?

Nas grandes famílias patriarcais, havia também os filhos ilegítimos ou “bastardos”. Raro o senhor de engenho que não teve filhos com uma ou várias escravas. Esses amores apareciam quando, na hora da morte, o proprietário fazia seu testamento. Ele aí declarava o nome dos filhos e de suas companheiras e, geralmente, alforriava as crianças nascidas de suas relações. Quando o senhor gostava de fato de sua amante, deixava para as “crias bastardas” algum bem que as ajudasse a ganhar a própria vida. Podiam ser cabeças de gado, pequenas joias ou um pedaço de terra. A mãe escrava quase nunca ganhava nada. – Mary del Priore.

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Jean-Baptiste Debret.

 

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