Os últimos redutos dos “machões”

A Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP (Esalq/USP), em Piracicaba, interior de São Paulo, foi palco de um episódio que mostra como o machismo e a hipocrisia estão enraizados em nossa sociedade.  Os alunos criaram uma espécie de ranking sexual de suas próprias colegas de curso. Em um cartaz, colocava-se o apelido da vítima, acompanhado de comentários depreciativos sobre suas preferências sexuais e características físicas. A instituição divulgou dias atrás que irá punir os responsáveis pela “brincadeira”(!?). Um dos professores teria dito (segundo depoimento de estudantes) que a culpa de haver esse tipo de ranking era das próprias alunas…

Não é a primeira vez que a imprensa traz casos de violência contra mulheres em cursos e universidades tradicionais. Várias faculdades de medicina foram investigadas por estupros, abusos sexuais e constrangimentos em diversos níveis, tendo como vítimas mulheres e homossexuais. Houve também casos registrados em cursos de engenharia e muitos outros. É assustador vermos que os nossos jovens insistem nesse tipo de comportamento, tão antigo,  tão retrógrado, tão machista…

É interessante notar ainda que as mulheres já se tornaram presença dominante no ensino superior brasileiro. Segundo dados do Inep, o percentual médio de ingresso de alunas mulheres, até 2013, foi de 55% do total, em cursos de graduação presenciais. Se o recorte for feito por concluintes, o índice sobe para 60%. Elas dominam os cursos de humanas e estão começando a ser maioria nas ciências biológicas também. O número de mulheres que entram na medicina é maior que o de homens desde 2009, revela pesquisa da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). De acordo com Mário Scheffer e Alex Jones Flores Cassenote, as mulheres já são maioria entre os profissionais com menos de 29 anos de idade e deve haver equilíbrio entre os gêneros na área no país, até 2028. No campo das exatas, os homens ainda predominam, com exceção de alguns cursos.

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A conquista desse espaço nas universidades e faculdades brasileiras não foi fácil. Uma lei de 1817 determinou a criação de escolas elementares no país. As mulheres, porém, ficaram excluídas até a reforma educacional de 1879, sendo que o decreto imperial que permitia sua matrícula no ensino superior é de 1881. Mas, as dificuldades em ingressar nesses cursos eram muitas, a começar pela própria formação básica defasada que o gênero feminino possuía. Rita Lobato Velho Lopes foi a primeira brasileira a receber um diploma superior no país, na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1887. Houve pioneiras que desafiaram o preconceito e as dificuldades, aventurando-se pelo masculino terreno das faculdades e universidades.

Infelizmente, as mulheres só se tornaram presença maciça nas universidades, a partir dos anos 70. Até então, ao gênero feminino era permitido, no máximo, cursar a Escola Normal para exercer o magistério. Isso era ocupação para “mulher honesta”, principalmente para aquelas que não se casavam.  Enfim, após tantos avanços e recuos, nos encontramos em uma situação em que as mulheres estão presentes em todos os setores e representam a maior parte dos estudantes em diversas áreas. Por que, mesmo passando pelo mesmo vestibular, tirando as mesmas notas, sendo aprovadas pelos seus próprios méritos, essas garotas precisam ser tratadas como indesejadas ou inferiores? O que faz um estudante humilhar uma colega apenas por ela ser mulher?

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Acho que a explicação mais óbvia é o medo de perder terreno, de enfrentar a competição. Entretanto, há outro aspecto que me chama a atenção. As ofensas são sempre de caráter sexual. Moderninhos e descolados, esses estudantes recorrem ao velho ataque à “moral” das mulheres que querem desqualificar. Gregório de Matos já fazia isso na Bahia do século XVIII, quando queria se vingar de alguma amante ou de alguém que o rejeitara:

“Com vossos três amantes me confundo,

Mas vendo-vos com todos cuidadosa,

Entendo que de amante e amorosa

Podeis vender amor a todo mundo.

(…) Que Vicenza me fez caridade

Porque leite mamei nas suas mamas”.

(À mulata Vicenza, amando ao mesmo tempo três sujeitos).*

Como bem sabia o poeta baiano, nada melhor para ofender uma mulher que xingá-la de puta, vagabunda, promíscua. E parece que essa máxima vale até os dias de hoje. Pois, se até mesmo o professor afirmou que a culpa pelo tal ranking sexual é – não dos seus autores – mas das estudantes que “não se deram ao respeito”. Ou seja, o pensamento é que se não tivessem feito sexo com os rapazes, estes não poderiam falar nada delas, não é mesmo? Quem mandou “cederem”? A ideia é estúpida, até mesmo porque em tempos de vinganças virtuais, é possível difamar alguém facilmente com montagens e outros truques. Contudo, isso mostra o grau de insanidade que permeia parte dos relacionamentos entre os gêneros, baseados em uma antiquada relação de poder. A mulher sexualmente ativa ainda assusta certos homens. E se ela for inteligente também? E se ela se destacar, conseguindo uma vaga que milhares de homens almejavam? Pois, é.

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Hoje, com a tecnologia, os nossos jovens apenas reproduzem velhos truques mesquinhos, da nossa tradição patriarcal. Apesar de esse tipo de atitude causar muito sofrimento, a presença feminina em todas as áreas de atuação é algo irreversível. Estamos aprendendo a denunciar tais agressões e a exigir justiça. Cabe aos últimos “machões” decidirem se continuarão a se portar como hipócritas moralistas ou se caminharão ao lado das mulheres para a construção de uma sociedade mais justa.

E vamos acompanhar esses casos de abuso, para ver se as instituições realmente punirão esses alunos. – Texto de Márcia Pinna Raspanti.

La-Maja-desnuda-del-Goya

“La Maja Desnuda”, de Goya.

 *”Poemas Escolhidos de Gregório de Matos”, de Jorge Miguel Wisnik (Companhia das Letras).

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