Os “mexeriqueiros”: da fofoca às denúncias ao Santo Ofício

            Em toda a parte, durante estação da colheita, vizinhos acorriam aos engenhos e fazendas, ajudar a catar as frutas em tabuleiros. Acompanhadas de mucamas que levavam o farnel do almoço, em cestas, começava a colheita cedo. As moças e crianças colhiam as mais baixas e os rapazes as mais altas. Quando o calor começava a ficar insuportável, estendiam-se esteiras no chão e os convivas se sentavam à volta da mesa improvisada. Danças depois das refeições permitiam alguma familiaridade entre rapazes e moças, que viviam trancadas a sete chaves.

           No campo ou na cidade, durante a faina diária, não faltavam interrupções ou momentos em que lazer e gestos repetitivos se misturavam: nas fontes ou rios, onde se reuniam as lavadeiras, “enterravam-se vivos e desenterravam-se mortos”. Nos mercados da cidade ou nas atividades agrícolas que juntavam homens e mulheres noticiavam-se, esmerilhavam-se e comentavam-se os acontecimentos locais, notadamente, os escandalosos ou ridículos. Entre homens, “praticar a boa conversação” – expressão que aparece recorrentemente nas denúncias ao Santo Ofício da Inquisição – durante ou depois do trabalho, ou, entre mulheres, enquanto coziam, lavravam ou faziam trancinha em suas almofadas de bordar, era forma comum de entretenimento.

           Um exemplo: certa Maria de Azevedo, “desceu abaixo a falar com o pedreiro João Nunes em presença de Gaspar da Silveira, purgador do engenho, e assim falando todos os três”, Maria acusou um vizinho defecar num penico, sobre um crucifixo. De uma conversação maldosa qualquer, podia nascer um judaizante, um herético, um somítico! Então, mexericar era, sim, uma forma de distração. E tão comum que havia mesmo uma lei, nas Ordenações Filipinas, código legal que perdurou até 1830, que proibia as intrigas. No livro V, pode-se ler:

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“Dos mexeriqueiros: Por se evitarem os inconvenientes que dos mexericos nascem, mandamos que se alguma pessoa disser á outra que outrem disse mal dele, haja a mesma pena, assim cível como crime que mereceria, se ele mesmo lhe dissesse aquelas palavras que diz que o outro terceiro dele disse, posto que queira provar que o outro o disse”.

            O hábito nunca se perdeu e quem o presenciou foi o viajante James Hardy Vaux, de passagem pelo Rio de Janeiro, em 1807:

Na rua em que estávamos estabelecidos, residia, na companhia de três jovens, uma velha senhora. Frequentemente, eu a via na porta de sua simpática casa, entretida com uns carretéis dispostos sobre uma almofada – esta atividade além de proporcionar algum divertimento, oferece uma fonte de rendimentos para os membros mais jovens das famílias. Essa senhora e suas acompanhantes ficavam sentadas no chão da sala de visitas, de pernas cruzadas, em frente a uma porta de treliça, que permanecia sempre aberta para receber o ar fresco. Todas as tardes, eu as encontrava nessa posição, entretidas numa animada conversa.”

  • Texto de Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: Colônia (vol.1)”, Editora LeYa, 2016.

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Imagem: “História Ilustrada do Vestuário”, Publifolha.

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