Os Bígamos do Reino

Não era fácil casar no Brasil Colonial. Embora homens e mulheres tenham constituído suas famílias, ninguém pensava na cerimônia na frente do padre, com bênção e chuva de arroz. Mas, além da pobreza, que outras razões,  poderiam existir para que se preferissem o amancebamento ao casamento?

Uma resposta está no próprio processo de povoamento da Colônia. Ele começou pela ocupação do litoral do Amazonas (1616) até o rio da Prata (1680).  No século XVII, os colonizadores penetraram o sertão do Nordeste e margearam o vale amazônico. Durante o século XVIII, aconteceu uma pequena revolução urbana provocada pelas lavras de ouro descobertas em Minas Gerais, e mais tarde, Goiás e Mato Grosso.

Tais deslocamentos de população – do litoral, para o interior, e depois, de volta para o litoral – faziam com que as pequenas cidades se esvaziassem. Quem partia eram justamente os homens que iam à cata de trabalho no sertão. Com isso, as cidades ficavam com mais mulheres do que homens. Sozinhas, cuidavam do pequeno comércio, da lavoura, da plantação e dos animais domésticos. Também prestavam pequenos serviços, como lavar, costurar, tecer, bordar, fazer doces ou eram padeiras, tintureiras, prostitutas e agricultoras.

Algumas, mais abastadas, eram fazendeiras, comerciantes de escravos e de tropas, que transportavam para o interior produtos comprados no porto do Rio de Janeiro. Enfim, trabalhando em casa ou na rua, as mulheres ajudavam na sobrevivência de suas famílias e eram membros destacados da economia informal que existia então.

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A existência de mulheres sozinhas nas pequenas cidades coloniais dava uma característica especial às famílias, que se constituíam, muitas vezes, apenas, de mãe e filhos, ou avó, mãe e filhos. Algumas destas famílias, cujo chefe, portanto, poderia ser uma mulher, incluíam escravos e escravas. Outras incluíam parentes velhos ou compadres e comadres, chamados “agregados”.

Outra razão para as famílias não  se constituírem a partir do casamento foi o preço da cerimônia. Casar, no Brasil Colonial, custava uma fortuna, além de ser uma trabalheira para conseguir todos os papéis exigidos pela igreja. Foi o que ocorreu, por exemplo, com um certo João Romão. Nascido num vilarejo da serra da Estrela em Portugal, decidiu conhecer a famosa Terra de Santa Cruz. Chegando ao Rio de Janeiro em 1703, partiu logo para Minas em busca de ouro. Em São Paulo, conheceu uma certa Gertrudes com quem resolveu se casar. Só que os papéis que João precisava para casar tinham ficado lá na “terrinha”. O mais importante deles era o atestado de batismo, provando que era católico, apostólico, romano. Nessa época, os navios demoravam de 40 a 45 dias para trazer e levar informações. Isso sem contar o tempo de ir até o interior de Portugal, subir a serra para chegar na pequena aldeia e procurar os ditos papéis.

Depois eram necessárias as “provisões”. Este documento determinava uma investigação cuidadosa na vida dos noivos para examinar se tinham sido casados antes, se moravam naquela paróquia há muito tempo ou se tinham algum laço de parentesco. Aos viúvos exigia-se o atestado de óbito do primeiro cônjuge. A investigação era fundamental, pois não foram poucos os homens como João Romão, que deixavam as legítimas esposas em Portugal. Quando chegavam na terra ensolarada do Brasil se enrabichavam por uma bela mulata escrava e passavam a viver amancebados. Depois de muitos anos de vida e alguns filhos, decidiam casar-se. Alegando não ter papéis, presumindo viuvez,  contraíam matrimônio mas, na realidade, eram bígamos.

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Houve outros que aproveitavam para enriquecer. Saíam pobretões de Portugal, vindo para cá em busca de ouro nas Minas Gerais. Como não achavam o metal dourado, passavam a procurar uma rica herdeira que quisesse se casar com um homem branco chegado do Reino. As razões para a bigamia foram várias, a maior parte delas decorrentes da aventura colonial: falta de notícias da esposa, vontade ou necessidade de casar-se outra vez, pressões da família, gratidão, amor ou miséria.

Haviam também os “banhos”. Esse documento deveria ser lido nas missas que antecediam à cerimônia, dando o nome dos pais e dos noivos. Se alguém tivesse alguma objeção ao casamento, poderia se pronunciar. O preço dessa burocracia era tão elevado que os próprios governadores reclamavam. Em São Paulo houve até briga entre o bispo e o governador. O primeiro, querendo cobrar uma fortuna pelas tais “provisões”. O segundo dizendo que pelo preço – na época 2$400 réis , (dois mil e quatrocentos réis) – ninguém conseguiria se casar. Só os muito ricos!

O pior é que as pessoas eram perseguidas quando não contraíam matrimônio na frente do padre. Por isso, muitos casais pobres pediam licença às autoridades para esmolar, como revela um documento datado de 1740. Nele, Francisco salvador e Angela Bicuda, moradores da freguesia de São Roque, em São Paulo, estando livres e desimpedidos para casar-se solicitavam ao bispo “por piedade” que lhes desse uma licença para esmolar. Os noivos alegavam ser “sumamente pobres” para pagar as despesas do casamento e como bons cristãos queriam evitar “ofensas ao Altíssimo e outros pecados”. Com as esmolas recebidas pretendiam quitar as dívidas contraídas na intenção de pagar os “banhos”.  O governador da capitânia, na época, ficou horrorizado com essa situação e até pediu ao bispo que dispensasse os pobres dessa despesa por considerá-la humilhante. Mas o bispo não o ouviu. Continuou cobrando…- Mary del Priore.

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“Porto de Lisboa”, gravura de Teodore de Bry.

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