Onde se esconde o desejo

Gilberto Freyre foi pioneiro em captar o interesse dos portugueses pela “moura encantada”: tipo delicioso de mulher morena de olhos pretos, segundo ele, envolta em misticismo sexual – sempre de encarnado, sempre penteando os cabelos ou banhando-se nos rios ou nas águas de fontes mal assombradas – que os lusos vieram reencontrar nas índias nuas e de cabelos soltos. “Que estas tinham também os olhos e os cabelos pretos, o corpo pardo pintado de vermelho e, tanto quanto as nereidas mouriscas eram doidas por um banho de rio onde se refrescasse sua ardente nudez e um pente para pentear o cabelo. Além do que, eram gordas como as mouras”.

Morenice e robustez eram, então, padrões de beleza. Não apenas na pluma dos poetas, mas também na pena de viajantes estrangeiros de passagem pelo Brasil, sensíveis, eles também às nossas Vênus. Coube-lhes deixar o registro do que era percebido e apreciado. Eis as impressões de um dos fundadores da Austrália, de passagem pelo Rio de Janeiro, em 1787:

“As mulheres, antes da idade de casar, são magras, pálidas e delicadas. Depois de casadas, tornam-se robustas, sem, contudo, perder a palidez, ou melhor, certa cor esverdeada. Elas têm os dentes muito bonitos e melhor tratados do que a maioria das mulheres que habita países quentes, onde o consumo de açúcar é elevado. Seus olhos são negros e vivos e elas sabem como ninguém utilizá-los para cativar os cavalheiros que lhes agradam. Em geral elas são muito atraentes e suas maneiras livres enriquecem suas graças naturais. Tanto os homens quanto as mulheres deixam crescer prodigiosamente os seus cabelos negros: as damas em forma de grossas tranças que não combinam com a delicadeza dos traços. Mas o hábito torna familiares as mais estranhas modas. Estando um dia na casa de um rico particular do país, comentei com ele minha surpresa relativa à grande quantidade de cabelos das damas e acrescentei que me era impossível acreditar que tais cabelos fossem naturais. Esse homem para demonstrar que eu estava errado, chamou sua mulher, desfez seu penteado e, diante de meus olhos, puxou duas longas tranças que iam até o chão. Ofereci-me, em seguida, para rearranjá-los o que foi aceito com simpatia”.

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No passado, os cabelos femininos – ou as chamadas “crinas” – eram altamente valorizadas, aliás, como o são hoje, em nossa cultura. Mas quais critérios inspiravam erotismo e atração física, na Idade Moderna? É bem verdade que as características físicas de nossas belas estavam um tanto distante do modelo renascentista europeu de beleza e sensualidade. Os grandes pintores do período, como Veronese, o veneziano, preferiam mulheres de cabelos claros, ondulados ou anelados, com rosto e colo leitoso como pérola, bochechas largas, fronte alta, sobrancelhas finas e bem separadas. O corpo devia ser “entre o magro e o gordo, carnudo e cheio de suco”, segundo um literato francês. Como se dizia então, a “construção” tinha que ser de boa carnadura. A metáfora servia para descrever ombros e peito forte, suporte para seios redondos e costas onde não se visse um sinal de ossos. Até os dedos afuselados eram cantados em prosa e verso, dedos de unhas rosadas, finalizadas em pequenos arcos brancos. Joias e pedrarias, bem diversas dos ramais de contas e da tinta de jenipapo que recobriam nossas índias, reafirmavam o esplendor da união entre elementos anatômicos e erotismo.

Mas o que se via, desta beleza? Nada. Os olhares masculinos brilhavam ao passar uma mulher… Coberta de cima a baixo!

“A imaginação sente-se singularmente excitada quando a gente vê essas figuras semelhantes às freiras, envoltas totalmente num manto preto, das quais mal se percebem o pezinho delicado e elegantemente calçado, um braço torneado e furtivo, carregado de braceletes e um par de olhos, cujo vivo fulgor as rendas não conseguem cobrir, movendo-se com leveza e graça sob os trajes pesados”, confessava um viajante estrangeiro.

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Era a velha fórmula: o que mais se esconde mais se quer ver. O fascínio de um olhar camuflado ou do pezinho da misteriosa criatura funcionava como uma isca para o desejo. Mulheres cobertas por véus aguçavam a curiosidade e o apetite masculino. Não a toa, os poetas cantavam apenas o que era possível enxergar, como Bocage: “porém vendo sair d´entre o vestido/ um lascivo pezinho torneado…”.

Apesar da pobreza material que caracterizava a vida diária no Brasil colônia, a preocupação feminina com a aparência, não era pequena. Mas vivia sob o controle da Igreja. A mulher, perigosa por sua beleza e sexualidade, inspirava toda sorte de preocupações dos pregadores católicos. Não foram poucos os que fustigaram o corpo feminino, associando-o com um instrumento do pecado e das forças diabólicas que ele representava na teologia cristã:

“Quem ama sua mulher por ser formosa, cedo lhe converterá o amor em ódio; e muitas vezes não será necessário perder-se a formosura para perder-se também o amor, porque como o que se emprega nas perfeições e partes do corpo não é o verdadeiro amor, se não apetite, e a nossa natureza é sempre inclinada a variedades, em muitos não durará”, admoestava um pregador resmungão. – Mary del Priore

india3

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  1. betty klein

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