O Vice-Rei e as festas coloniais

O Marquês do Lavradio foi o décimo primeiro Vice-rei do Brasil, nascido em Ribaldeira, Portugal, apelidado de “o Gravata” por seu modo de se vestir. Filho de D. Antônio de Almeida Soares Portugal, tornou-se brigadeiro do Exército português. Substituiu Antônio Rolim de Moura Tavares como vice-rei do Brasil, com residência no Rio de Janeiro, exercendo o cargo por nove anos (1769-1778). Em seu governo incentivou o teatro e fundou uma academia científica para o estudo dos recursos naturais do país. Preocupado principalmente com as obras militares necessárias à defesa da capital, construiu as fortalezas do Pico e do Leme e abriu novas ruas, como a que conserva o seu nome. Nunca se acostumaria com os costumes da Colônia. 

 

Na tarde de sol o Marquês do Lavradio partia no sege puxado por seis mulas. Evitava a rua do Ouvidor, até bem pouco tempo, percorrida por carros de boi carregados de capim. Deixando para trás a barulheira da “quitanda dos mariscos” ou da Rua da Quitanda, rumava em direção à rua dos Pescadores, acompanhando o braço de mar que adentrava terra à dentro, onde pombeiros, – nome que se dava aos atravessadores -, encostados às canoas, ofereciam  peixe fresco. Cruzava no caminho cadeirinhas, serpentinas e liteiras, muitas delas pintadas, esculpidas e com suas cortinas de seda bordadas a ouro hermeticamente cerradas. Pés descalços, os escravos vestidos com casacos leves de seda e saiotes sobre calças curtas suportavam nos ombros o peso do “sinhô e da sinhá”.

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Seguia para o campo da Cidade, depois campo de São Domingos onde mais animadamente se comemoravam as festas públicas, com danças, fogos de artifício, leilão de prendas, mastro da cocanha, cavalhadas e comilanças. Tais folguedos, iniciados no sábado de Aleluia, se prolongavam por muitos e muitos dias e terminavam sempre pela coroação do Imperador do Divino, de preferência um meninote de uns doze anos, ricamente vestido: casaca e calção de veludo vermelho, meias de seda branca e espada à ilharga. Isso para não falar no cetro e na coroa, às vezes de inestimável valor, de bom metal e cravejados de pedras preciosas. Tudo se passava num nesga da chácara de D. Emerenciana Dantas de Castro que fizera construir um império, “pavilhão de pedra e cal”, com capelinha ao fundo, em cujo terraço o pequeno imperador recebia as homenagens de seus súditos ao som da “música dos barbeiros”, orquestra de mestres e oficiais da corporação dos barbeiros da cidade. Num anfiteatro próximo, Lavradio era aguardado por notáveis: comerciantes de grosso trato, os homens do Senado, da Câmara e da Provedoria, além dos representantes da Mitra. À sua chegada espocavam girândolas de rojões, multiplicando-se as cortesias oficiais. Ao som de trombetas e charamelas o vice-rei se abrigava sob os panos de um toldo improvisado. O movimento de casacas e mantilhas do público era interrompido pelas negras de tabuleiro que vendiam o refrescante aluá, canjica e pamonha. Salvas de palmas e gritos anunciavam: “- Vai começar! Vai começar!”.

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Em trajes exuberantemente coloridos, sobre cavalos guarnecidos com espelhos, pérolas falsas e vidrilhos, a mascarada abria o desfile. Seguia-se a apresentação de dançarinos “mouriscos” e “gigantes”. As corporações de ofício apresentavam suas bandeiras de São João, Santo Antônio e São Pedro empunhadas por indivíduos fantasiados “à trágica”. Rabecas embalavam as danças dos “sapateiros” enquanto que ao som de adufes e pandeiros passavam galegos. “Os pretos – conta um documento de época – divididos em nações e com instrumentos próprios dançam e fazem como arlequins com diversos movimentos de corpo que ainda que não sejam os mais indecentes são como os fandangos de Castela”. Crianças escravas e forras, “vestindo saiotes de seda agaloados com ouro e capacetes com tremulante plumagem executaram a dança dos “índios carijós” seguidos de um préstito de escravos “cantando e dançando a modo etiópico”. O ponto alto da festa? A dança das “calheiras”, na qual homens vestidos de mulher, com saias rodadas e finas camisas de renda bailavam. Nas tabernas à volta da praça, outros complementos da festa: a cachaça, o jogo de cartas e dados, as mulheres. Fontes com licores coloridos jorravam enquanto brancos, negros e mulatos comiam e brincavam, “esguichando, deitando pulhas e laranjadas”.

Teria jamais Lavradio compreendido que as festas constituíam um grito desafiador contra as dificuldades da árdua vida na Colônia representando um exutório das tensões acumuladas contra as autoridades, fossem elas o senhor de escravos, a Igreja católica ou o próprio governo português, que ele mesmo representava? Seriam tais festas tão mais capazes de extravasar tensões quanto à centralização administrativa proposta por Lavradio colocava a população de cócoras sob rígido controle? Festas eram o contraste com os ritos do quotidiano. Eram o oposto do fundo permanente e quase imutável de pequenos fatos diários. Alheio, contudo, a cultura mestiça que aqui se desenvolvia, o Vice-Rei concluía enfadado: “Aqui tudo me fede, tudo me come, tudo me aborrece”. – Mary del Priore

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