CEM ANOS DA MORTE DO POETA: AUGUSTO DOS ANJOS E A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA LOCAL

Por Natania Nogueira.

Afirmar que todos conhecem a obra do poeta Augusto dos Anjos seria exagerado.  Apesar de ser considerado um dos grandes poetas brasileiros, o paraibano não é necessariamente uma figura que percorre os livros de história e de literatura, pelo menos na maior parte do país. Mas é um personagem singular cuja memória é constantemente revivida em dois estados brasileiros: Paraíba e Minas Gerais.

O primeiro é seu berço, lugar de seu nascimento, onde passou a infância e a juventude. Na cidade de Sapé, um memorial homenageia o poeta. As escolas públicas estão promovendo concursos e homenagens em toda a Paraíba, afinal, 2014 marca o centenário da morte de Augusto dos Anjos. Ironicamente, o poeta deixou a Paraíba por questões políticas, jurando não mais voltar, e acabou tornando-se um dos seus filhos mais ilustres.

O segundo estado, Minas Gerais, é o lugar do seu repouso, onde o poeta da morte encontrou seu leito definitivo de descanso, mais especificamente na cidade de Leopoldina. Para lá ele se mudou com a família para assumir o cargo de diretor do grupo escolar. Morou em Leopoldina apenas por poucos meses. Morreu ainda bem jovem,aos 30 anos de idade, vitimado por uma pneumonia que adquiriu ao tomar uma forte chuva, após comparecer a um enterro no cemitério local.

Tendo sua obra reconhecida e exaltada após sua morte, Augusto dos Anjos torna-se um objeto de desejo, literalmente, de duas cidades, de dois estados. Seu corpo, sepultado em Leopoldina, foi disputado pela Paraíba. A cidade mineira ficou com o poeta, que não retornou para seu Estado de origem nem depois de morto. Ele passou a ser incorporado pelo imaginário local. O poeta exilado na pequena cidade do interior é assimilado pela memória histórica. Seu nome está em escolas, em ruas e em eventos culturais que são periodicamente realizados.

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Essa construção da memória a partir de um mito, porque Augusto dos Anjos se tornou um mito, acabou por servir de referencial para várias gerações. Sua poesia, sua história de vida, foram apropriados pela cultura local. Em torno dele se criou um discurso, “uma fala escolhida pela história”, se quisermos usar uma citação de Roland Barthes. Constrói-se assim o mito de Augusto dos Anjos, do poeta talentoso que elege a pequena cidade do interior para viver seus últimos dias, dando a ela uma importância nacional.

Temos, em torno de Augusto dos Anjos, duas memórias que se alternam. Uma memória infeliz, que fala do sofrimento, do abandono da terra natal, da busca pela vocação (o magistério). A outra é uma memória feliz, marcada pela realização profissional quando conquista o posto de diretor de uma escola. Poucos meses de suposta felicidade são exaltados como se representassem a culminância de toda uma existência.

A construção da memória não é necessariamente comprometida com os fatos, que podem ser interpretados ou reinterpretados de acordo com os interesses individuas ou coletivos. Em seu livro “A memória, a história e o esquecimento”, Paul Ricoeur afirma que: “A fidelidade ao passado não é um dado, mas um voto. Como todos os votos pode ser frustrado e até mesmo traído. A originalidade desse voto é que ele consiste não numa ação, mas numa representação retomada numa sequência de atos constitutivos da dimensão declarativa da memória.”

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A memória possui um elemento subjetivo. Não é difícil perceber essa subjetividade no caso da memória histórica construída a partir de Augusto dos Anjos. Ligado ao discurso que exalta o poeta está um elemento afetivo que o vincula à cidade. Sua memória, assimilada pela memória local, é uma memória positiva. Ele vivou na cidade por pouco tempo, mas por um tempo feliz. Valoriza-se o local não apenas por seus aspectos físicos, mas afetivos, também.  O poeta amou a cidade. Ele desenvolveu nela um sentimento de pertencimento.

A memória pode ser um elemento estimulante. A comemoração do centenário do poeta na pequena cidade de Leopoldina, por exemplo, tem agitado o cenários cultural e educacional por meio de eventos direcionados aos mais variados públicos. Na Paraíba, das universidades às escolas públicas leituras, concursos, debates e uma série de outras atividades vem promovendo uma revisitação à história e à memória locais.

É uma característica do fazer humano a necessidade de criar referências que orientem um grupo, uma comunidade, que ajudem a compor uma identidade local.  E é importante estar sempre estimulando a reflexão acerca disso. Não um simples culto ao herói, mas o uso, a apropriação da memória de modo a reforçar a identidade e a cultura locais.

Imagino como o poeta teria reagido ao impacto que sua obra, concentrada em um único livro, trouxe para o cenário cultural nacional. De como ele se sentiria ao saber que seu nome serviria como um ponto de referência para uma cidadezinha onde viveu por apenas poucos meses. Imagino, porque, afinal, a memória é, também, um exercício de criatividade.

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Túmulo de Augusto dos Anjos, em Leopoldina, Minas Gerais; Memorial Augusto dos Anjos, em Sapé, na Paraíba.

5 Comentários

  1. Denis
  2. Nadja Cristiane Lourenço Feitosa
  3. jadir nogueira
  4. Ninfa Sampronha Barreiros

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