O moralismo da Era Vargas: contra a depravação e o aborto

Durante o Estado Novo (1937-45), valorizou-se a ideia de coesão social necessária para fortalecer a pátria. Esse apelo implicava na definição de um modelo de família que expurgaria todas as ameaças à ordem: imoralidade, sensualidade e indolência. A população suspeita de incorrer nesses “delitos” sofria repreensões. O papel da mulher não era na rua, trabalhando, mas em casa, cuidando dos filhos. E de todos. Nada de controlar o tamanho das famílias, mas de cuidá-la para não produzir casamentos desfeitos com suas consequências: alcoolismo, delinquência, marginalidade. A questão da reprodução atravessava essa agenda e cabia à medicina legal e ao médico tratar os delitos relacionados ao sexo. Num dos mais completos trabalhos apresentados a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Antonio F. da Costa Júnior diagnosticava:

“As proporções a que, em nossos tempos, tem atingido esse crime, tão clara e perfeitamente previsto no nosso Código penal, nos incita, ainda mais revoltados pela sua vergonhosa impunidade, a pôr em evidência a sua brutalidade e hediondez, e a procurar um meio de saná-lo, quer com medidas de ordem moral, quer com medidas de ordem legislativas”.

Oswaldo Povoa, médico em Campos, no sul fluminense, em 1936, dizia ser o aborto um dos problemas principais da cidade onde clinicava. Seu número seria “infinito”. Uma vez, a Maternidade local inaugurada, a sala de “infectadas” não esvaziava jamais. “Muitas procuram o profissional, ainda com a sonda criminosa introduzida no canal cervical”, queixava-se, chocado. O preço do serviço era de dez a vinte mil réis. E, numa época em que população grande rimava com desenvolvimento, concluía pesaroso: “A expressão “a riqueza do pobre, são os filhos”, só existe de memória”.

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As causas de tanta “depravação?”: “A mulher casada que engravida na ausência do marido, a mulher frequentadora do meio chique e cuja gravidez lhe impede continuar a comparecer a festas e reuniões, etc. A demi-mondaine, perturbada no exercício de sua profissão por uma gravidez inoportuna, a amásia que se vê surpreendida por uma gravidez inesperada, e finalmente a representante da classe burguesa, cujo modesto orçamento seria desequilibrado pela vinda de uma criança, que tem achado como único recurso para sua situação, a prática do aborto”.

E martelando a tese de que o produto de uma gravidez pertencia ao Estado:

O produto da concepção normal não pertence só a mãe, ele pertence também ao Estado […] a prática do aborto criminoso suprime o indivíduo, membro da família, de que se compõe o Estado”.

Apesar do controle, os “fazedores de anjos” estavam em toda a parte. Impunidade e hediondez são palavras que se associavam a prática exercida por profissionais ou curiosos. Sobretudo, pois havia ali uma indústria rendosa. Nos jornais da capital publicavam-se, sem cerimônias, anúncios:

Mme. P… parteira e massagista, com doze anos de prática, possui uma descoberta para senhoras doentes, que não possam ter filhos, assim como tem outros segredos particulares; garante-se ser infalível; aceita parturientes em pensão”. Ofereciam-se, também, “consultas grátis e “cura radical sem dor, nem operação” para “evitar a gravidez”: um eufemismo para abortar.

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Em 1940, o novo Código penal definia prisão de um a três anos para a gestante, sem qualquer facilidade. Acrescia, contudo, que em caso de estupro ou de risco de vida, admitia-se a operação. Eram os chamados casos “permissivos”. Apesar dos cuidados legais, poucas mulheres foram punidas por aborto voluntário. A maioria tinha que enfrentar a repreensão social: polícia em casa, depoimentos de parentes e vizinhos, fofocas e humilhações. Acusadas de “amantes” de alguém, esse “alguém”, contudo, raramente dava as caras.

Pesquisas sobre quem abortava indicam que eram poucas amantes e muitas, as mães de família: mulheres casadas, com vários filhos, tentavam a todo o custo impedir o crescimento da família já numerosa. Sabiam que mais rebentos seriam sinônimo de maior pobreza. Receitas para “fazer descer as regras”, a base de artemijo, cipó milone, casaca de romã foram eficientes fatores de controle familiar, por décadas. Hoje, calcula-se em torno de 750.000 a 1,4 milhões de abortos no Brasil. O clandestino ainda é responsável ela morte de muitas mães.

– Mary del Priore.

 

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No governo Vargas, o feto não pertencia apenas à mãe, mas também ao Estado.

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  1. Marta Paula dos Santos

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