O medo do poder feminino

Desde que o Concílio de Trento liberara, pelo menos teoricamente, a mulher da tirania do direito romano, uma vez que a monogamia fora definitivamente estabelecida, a indissolubilidade proclamada, os maridos proibidos de repudiarem suas mulheres e relaxados os casamentos forçados, a mulher precisava ser reinscrita num sistema de hierarquia e obediência. Se diante de Deus os esposos pareciam parceiros iguais, nas práticas sociais, mecanismos de rejeição à ideia de indissolubilidade do casamento começavam a azeitar-se. Para disciplinar a mulher e dar ao sacramento a dimensão de organização social que desejavam o Estado e a Igreja, se invocam antigas implicâncias extraídas das sagradas Escrituras.

Um exemplo: certo Guia de casados, espelho da vida, ditames da prudência, instrução proveitosa para todos os que tomam o pesado jugo da vida matrimonial previne:

“que os homens amem suas esposas é tão justo e recomendado, mas que o exímio afeto com que as tratam se transforme em dano dos mesmos que as amam é intolerável. É a mulher o centro dos apetites, desejosa de muitas cousas, e se o homem convier com seus desejos, facilmente cairá nos maiores precipícios. É o homem que deve mandar, a mulher somente criada para obedecer, mas como seja em todos natural a repugnância da sujeição, todo o seu empenho é serem no mando iguais, quando não podem aspirar a superiores”

Não havia alternativa à esposa do que estar, segundo um padre confessor, sujeita ao marido, reverenciando-o, querendo-o, cobrindo-o de vontades, e com sua virtude, exemplo e paciência, ganhando-o para Deus. Os afetos conjugais idealizados pela Igreja se entreteciam num misto de dependência e sujeição, se traduzindo numa vida de confinamento e recato que atendia ao interesse tanto da Igreja, quanto da mentalidade dos maridos.

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Afetos desregrados da alma ou do corpo mereciam ser abolidos mediante um pedagógico treinamento, tornando o matrimônio inteiramente asséptico. Essas ideias não eram apenas da Igreja, mas circulavam na literatura e nos manuais de casamento, que não contentes em projetar modelos para uma vida conjugal, colocavam tais modelos a serviço da Igreja e do Estado, dando assim, uma dimensão moderna à ética do casamento e do amor conjugal:

Parece que os perfeitos casados não poderão nunca ser viciosos; porque ninguém deve negar que todo o pecado é corrompedor de boas intenções e os casados, por muito que se amem e se conformem se por outra parte são pecadores, não podem ter sua tenção regulada por leis divinas; porque se a tiverem, assim corrupta e depravada, logo ficam muito arriscados ou a perder o amor que se tem em todas as ocasiões que se oferece, ou a se amar com tanta desordem, que não reparem a ofender o mesmo Senhor, por se fazer um ao outro, quaisquer vontades desordenadas”

De forma feroz ou sutil, os textos deste período não escondem uma realidade explorada na Europa do Antigo Regime em gravuras e contos populares: o horror à dominação da mulher no quadro do casamento. Pranchas em que as esposas aparecem vestindo calças do marido, segurando suas armas ou batendo-lhes com instrumentos de uso diário – a vassoura é frequente – revelam o pânico que exigia medidas drásticas e habilidosas por parte dos homens. Ideal, era, portanto, endossar o discurso da Igreja e dos manuais de casamento sobre as práticas conjugais. Não apenas a vontade feminina ameaçava o equilíbrio de forças desejado dentro do matrimônio, mas, também, a possível beleza física. Esta era temida pois associava diretamente a mulher a um instrumento do pecado:

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Quem ama sua mulher por ser formosa, cedo se lhe converterá o amor em ódio; e muitas vezes não será necessário perder-se a formosura para perder-se também o amor, porque como o que se emprega nas perfeições e partes do corpo não é verdadeiro amor, senão apetite, e a nossa natureza é sempre inclinada a variedades, em muito não durará[…] e logo a natureza muda os desejos, a vontade, os efeitos, o amor fica fingido e o casamento desordenado”.

Era preciso não ter vaidades, ignorar a beleza física ou qualquer forma de atrativos que valorizassem o sexo.  O enfeamento do corpo estava articulado com a punição deste mesmo corpo. Pregadores o comparam ao “barro, lodo e sangue imundo” numa tentativa de dizer que tudo era feio, pois tudo era pecado. A esposa podia ser um veículo de perdição da saúde e da alma de seus maridos. Ela devia inspirar sentimentos que os moralistas procuravam desenhar, sem borrões.

Os sentimentos entre os casados devia ser nitidamente objeto de uma “educação dos sentidos”. Os casamentos iam lentamente se esvaziando de apetites – se eles tivessem algum dia existido – para consolidar-se numa nebulosa de sensações domésticas: o bem querer misturando-se à elevação do espírito, à devoção e à piedade. Tudo, de preferência, na santa paz do Senhor. Carnes tristes e frias, estas das quais se fala nos séculos XVII e XVIII, bem distantes dos corpos exuberantes descritos, como já vimos, em certa poesia do Renascimento. Impunha-se uma dicotomia sexual, na qual o homem era ativo e a mulher, passiva. O desejo sexual se constituía num direito exclusivo do homem, cabendo às esposas, a submissão e a virtude. O esforço de adestramento dos afetos, dos amores e da sexualidade, sobretudo, a feminina,  afinava-se com os objetivos do estado Moderno e da Igreja, em tornar a relação entre os sexos, mais próxima do ideal da sociedade católica, evitando as infrações que o pudessem perturbar. A domesticação do amor conjugal espelhava, assim, a nova ideologia dos tempos modernos. – Mary del Priore.

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“A Sagrada Família”, de Juan Carlos Boveri.

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