O martírio dos “defeituosos”

 

     Há séculos, os feios e “diferentes” servem de bode expiatório a sociedades muito seguras de suas verdades ou do discurso de suas elites, sempre dispostas a determinar modelo ideais. Até hoje, vivemos sob a tirania da perfeição física. Todos queremos ser sadios, magros, jovens para  participar da sinfonia do corpo magnífico, quase atualizando as intolerantes teses estéticas dos nazistas.

       Na outra ponta, criaturas como madre Teresa de Calcutá conheciam de perto os horrores do sofrimento físico. Ela dizia que o trágico da “feiura” de um leproso, era a sua solidão, o fato de ser indesejável, rejeitado. Que se podia fazer tudo por um corpo em sofrimento. Mas nada por esse “outro” sofrimento feito de negação. Anônimos, os que são “defeituosos”, simplesmente vêem seus corpos recusados. A fotografia, o filme, a televisão e o espelho dão ao homem moderno o conhecimento objetivo de sua própria imagem. Mas, também, a forma subjetiva que ele deve ter aos olhos de seus semelhantes. Numa sociedade de consumo, a saúde aparece como motor do bom desenvolvimento da existência e a imperfeição é vivida como um drama. Daí a multiplicação de clínicas de cirurgias milagrosas.

      Mas, e no passado? Foi mais complexo e doloroso. E quem nos conta é  a psicóloga Lília Ferreira Lobo numa obra pioneira sobre o tema,  “Os infames da História- pobres, escravos e deficientes no Brasil”. Resultado de alentada pesquisa de doutoramento, ela nos arrasta ao longo de quatro séculos para conhecermos de perto como eram vistos, ignorados ou tratados os escravos, pobres e deficientes do Brasil. Convida-nos a analisar as deficiências como “instituição” inserindo-as em sua historicidade, promovendo sua visibilidade. E demonstra que o momento em que surgem cuidados com a diferença é também aquele em que começam a se fabricar os sentidos que lhes atribuímos e a preocupação com o destino dos que não eram como os outros.

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     O livro se desenrola em quatro partes, recheadas de densas informações e atualizadas discussões teóricas e bibliográficas. Vasto contingente de fontes documentais, de crônicas de viajantes estrangeiros a denúncias da Inquisição, teses de medicina, livros de higienistas e criminalistas alimentam robustos capítulos. A primeira trata das monstruosidades, das resgatadas dos relatos de viagem do Renascimento à teratologia, ciência dos monstros e dos degenerados, que,  no século XIX  passa a discutir estragos na espécie humana. Na segunda, a autora explora o material produzido pelas Visitas do Santo Ofício analisando casos tão surpreendentes quanto o de Brites Fernandes de Camaragipe, aleijada e mentecapta, perseguida e condenada por deficiência mental. A idiotia, nesses tempos, era vista como um defeito moral. Mais eloquente do que a Inquisição foi outro tribunal: o da eugenia. Esse perseguia “negros tolos”, onanistas, pederastas, cegos, surdos-mudos, prostitutas e jovens delinquentes. A utopia de uma sociedade organizada e produtiva, constituída só por exemplares perfeitos da espécie humana, estava em curso com o apoio de renomados médicos do século XIX. Os remédios? Esterilização, extermínio, embranquecimento.

       Na terceira parte, Lilia se debruça sobre as marcas da deficiência no corpo de escravos, parcela dos que os teóricos chamavam de “humanidade inferior”. E conta a trajetória dos descartados, dependentes da caridade pública e das redes de solidariedade montadas pelos próprios cativos. Doenças, mutilações, suicídio, fome e castigos eram ao mesmo tempo causa e conseqüência da existência destes “fardos sociais”. E o que dizer de sua inserção no mundo do rendimento e da cidade? Na última parte deste alentado trabalho, excelente é sua contribuição sobre os estabelecimentos especializados como o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, o Instituto dos Surdos-Mudos e o Pavilhão-Escola Bournevelle para crianças, ainda tão pouco estudados.  O último, substituiu o hospício que na pena de Olavo Bilac era a “Casa do Sofrimento”: habitada por alucinações, ali tudo respirava miséria e abandono, e as crianças viviam pelo chão, gritando e se arrastando como “animais malfazejos”. O único alimento, além da ração diária que recebiam, era o carinho de certa Tia Ana, uma Cabocla louca e segundo o poeta, doida de amor pelos filhos que não tivera.

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            Por meio de um trabalho de fôlego e visivelmente apaixonado, Lilia se junta à luminosa constelação de psicanalistas que vem se debruçando sobre a História e emprestando sua escuta sensível ao passado. E nele, atenta àquilo que o corpo tem a dizer. Lugar de poder, emblema de identificação, máquina de suplícios da modernidade o corpo fala, conta e reconta. Para sorte do leitor, Lília está lá para encontrar as palavras certas, e registrar suas dores num livro inspirado e corajoso.

– Texto de Mary Del Priore.

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  1. rosa maria ribeiro

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