O início da Quaresma e a “Serração da Velha”

          As festas religiosas representava um tempo de exceção em meio à rotina de trabalho nos tempos coloniais.Uma delas, onde era mais visível a presença de aprendizes, jovens oficiais, e empregados nas tendas de comércio era a festividade chamada de a “Serração da Velha”. A cerimônia caricata de serrar a velha realizava-se durante a Quaresma, que se inicia na Quarta-Feira de Cinzas e termina na Páscoa. Os dias em que se comemorava a Serração da Velha variavam, vindo até o sábado de Aleluia. Um grupo de foliões serrava uma tábua, aos gritos estridentes e prantos intermináveis, fingindo serrar uma velha que, representada, ou não por algum dos vadios da banda, lamentava-se num berreiro ensurdecedor: “Serra a velha! Serra a velha”! E a velha gritando, gritando. Por vezes ocorria essa comédia diante da residência de pessoas idosas e o grupo era repelido a baldes d’ água e mesmo tiros de espingarda ou pistola. Noutras ocasiões mediante convênio prévio, os bandos de jovens recebiam bolos e bebidas, para a refeição ao amanhecer, porque a serração era durante a noite, para tornar mais sinistro o espetáculo.

         Ao final e dado certo sinal, jovens de ambos os sexos se embolavam, trocando empurrões, pontapés e tapas. Os mais violentos acabam na prisão, enquanto as jovens – verdadeiras Cinderelas – queixam-se de sapatos perdidos e chinelas rotas. A representação da Quaresma como uma velha serrada pelos jovens determina bem o significado ritual da luta entre as diferentes faixas etárias. Mas quem é a Velha? Certamente, uma representação da morte. Uma das várias que, no passado, à época da Quaresma, percorriam as ruas. Às vezes, a Velha corria empunhando uma foice e revidando a pancadaria dos rapazes que a perseguiam cantando “Oh Morte! Oh piela, tira a chicha da panela! ”. Outras, ela acompanhava a procissão das Cinzas. A Velha personificava a Quaresma e Gil Vicente, em sua obra Triunfo de Inverno, representou o inverno como a Velha perseguida por Maio, o moço jovem, o verão. E quanto à função simbólica da Serração da Velha? Câmara Cascudo explica que tradicionalmente a Velha é uma entidade maléfica ou grotesca, intervindo nas estórias com a função de perturbar a felicidade ou dificultar a conquista de alguma coisa.

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        Como permanência das tradições europeias, misteriosa e cheia de poder, ela simboliza a morte, as trevas, a fome. Com o crescimento urbano, o aumento de violência e das dificuldades de sobrevivência, os jovens “botavam para fora” seus problemas na Serração da Velha. Barulhos, gritaria e ritos aí cuidadosamente representados – o julgamento, testamento e morte da Velha – ajudavam na catarse. Numa batalha simbólica contra a morte, eles celebravam o fim do inverno (em fevereiro, no hemisfério norte), o final da Quaresma e da esterilidade dos campos, homenageando a chegada do verão e da fecundidade, enfim, o poder da juventude. A inversão carnavalesca da poderosa morte, personificada numa frágil Velha serrada, era também uma forma de meditar sobre a passagem do tempo, o envelhecimento e a morte.

  • Texto de Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: Colônia” (vol.1), Editora Leya, 2016.(adaptado).

 

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