Os desfiles de moda não deixam dúvidas: a sociedade brasileira ficou “lipofóbica”: odeia a gordura. Por um lado, a cultura de massas, produtora de milhares de imagens, estimula-nos a admirar e invejar corpos jovens e magros. Por sua vez, a medicina vê na obesidade um problema de saúde pública, procurando, em resposta, impor um “peso teórico” ideal. Quantas revistas femininas não ajudam a calculá-lo? “Multiplique a altura pelo peso e raiz quadrada de X…”. Enfim, o resultado é só frustração! Os corpos verdadeiros, os reais, correm, por sua vez, desesperados atrás dos modelos sonhados. Longe estamos dos tempos nos quais as formas cheias eram benquistas e bem-vindas. Não faltaram poetas como Manuel Bandeira, a cantar o sonho de sereias redondas a nadar nas águas translúcidas do Capiberibe, em Recife. A gordura já esteve associada a saúde, porpsperidade e respeitabilidade.
A magreza, por sua vez, remetia à doença, à consumição, à tísica, anemia e clorose: doenças que enfeavam e matavam homens e mulheres. Pior: a magreza tinha uma conotação psicológica – remetia a mesquinharia, avareza ou ambição desenfreada. Não faltam exemplos na pintura e na literatura nos quais os maus são sempre magros, esqueléticos, as mãos em garra, a fisionomia enrugada. Havia algo pior do que ser chamado de “seco de tão ruim”? Informações como estas apenas confirmam que esculpimos o corpo de acordo com a cultura na qual estamos inscritos; que a definição social do corpo ideal mudou ao longo dos tempos.
Mas será que o desejo de ser magro e a reprovação da gordura são fenômenos exclusivamente modernos?
Dois especialistas, Cibelle Weinberg e Táki Cordas, demonstram que não. Afirmam que, pelo contrário, há uma longa tradição de abstinência alimentar no mundo ocidental cristão – abstinência que pode ser parcial, total, episódica ou permanente. A origem? A mística religiosa, que previa que, se o corpo fosse o único obstáculo à salvação eterna – pois é ruim e sujo –, melhor fazê-lo desaparecer. Daí um número infinito de martírios aos quais os fiéis se impunham na perspectiva de ganhar os céus, para que o corpo se tornasse alma; para desencarnar. O caminho mais rápido? Parar de comer.
Desde a Idade Média, a privação alimentar era a punição mais imediata. Havia gente que jejuava à base de pão e água. Outros misturavam pão velho a cinzas, molhando-o nas águas sujas que escoavam das bacias dos conventos. Ingerir líquidos fétidos era outra forma de privação. Engolir só hóstias consagradas, outra. Vivo, o místico preparava a própria morte. A abstinência lhe dava a sensação de ser mestre, e não escravo, do corpo – era o espírito dominando a carne. Essa era uma maneira anoréxica de se estar no mundo, com o simples objetivo de escapar dele. A anorexia mística era uma maneira de se aproximar de Deus, afastando-se dos homens. E via-se, nessa domesticação das necessidades físicas, uma manifestação de santidade.
No século XIX, as razões psicológicas da anorexia começaram a ser mapeadas. Nasceu nessa época, e com o auxílio da fotografia, uma medicina das deformidades, a anorexia sendo uma delas. Certo olhar eugenista e racista obrigava as anoréxicas a comer; impunha que as doentes ingurgitassem enormes quantidades de comida, enquanto a moda ditava formas firmes e ágeis, resultantes da introdução do esporte na vida feminina. Hoje, a anorexia continua a se transformar. Místicas, cloróticas e anoréxicas são apenas uma parte de uma imensa constelação ainda não totalmente conhecida. Longe das beldades arredondadas que foram nossas avós, a magreza que antecede a anorexia está em todas as imagens que nos cercam: magnificada, onipresente, um verdadeiro suporte para todas as mercadorias. Nua, lisa, sem dobras, bela, corrigida, maquiada, quase deificada, ela reina. É suporte natural para a sedução, o desejo e a sensualidade. Os corpos magros são jovens, belos e… vazios! Diferentes do corpo das místicas, plenos de fé, sua evidência está ligada apenas ao consumo. Mas até quando?
“A Banhista”, de Renoir: formas exuberantes.
É verdade que os modelos estéticos que quase endeusavam a “magreza” prevaleceram em certos meios da moda “main stream” mas creio que estarão em declínio por casos graves que foram acontecendo a pessoas mediáticas. Porém, em meu entender, nunca houve uma resposta de massas a esse modelo. A questão da obesidade aparece como um problema social e de saúde pública depois de anos e anos de “meter a cabeça debaixo da areia”, também porque as grandes multinacionais do “fast food” e dos “refrigerantes” investiam grandes somas em publicidade, e os responsáveis fechavam os olhos. O problema emerge a nível mundial , como emergiu o do consumo do tabaco quando os serviços públicos começaram a fazer a contabilidade dos custos e das mortes prematuras. Como dentro de anos aparecerão os resultados do uso do celular, problemas já antevistos, mas como de costume “não há provas concludentes” então deixa-se andar.
Trata-se portanto de duas questões, por um lado as propostas da moda, por outro a questão da saúde. Parecendo ser uma só questão a verdade é que o horror da gordura é hoje em dia mais motivado pela vulgarização das questões ligadas à saúde do que propriamente por imperativos da publicidade e da moda.
Creio de fato ter lido seu trabalho com pouca atenção e percebi depois o seu objectivo que achei muito interessante. Mas reconheçamos que o título e certas partes do texto se prestavam a confusão, tanto como a pergunta final: “Mas até quando?”
O apelo à reflexão ficou porém bem assinalado. Bem haja.
A luz da minha visão de leigo no assunto, todo excesso, tanto para gordura, quanto para magreza, nos leva a pensar na saúde do ser humano. Não precisamos voltar a idade média com a restrição dos alimentos. Muitas famílias brasileiras até mesmo nas megas cidades, por falta de distribuição das riquezas da nação, sofrem de raquitismo. Obesidade hoje também passa por deformação dos hábitos alimentares e falta de informação de uma alimentação balanceada; Como também, o modo de vida sedentário.
Acho que esta questão vista apenas do ponto de vista da moda, escamoteia o fundo do problema. Na realidade deveríamos analisar, entre outros, sob o ângulo da saúde individual e pública. Nos tempos em que a “gordura” era bem vista, pessoas anafadas eram sinal de acesso a alimentos com fartura por outro lado escassos para a maior parte da população. Depois quando os alimentos ficaram acessíveis à grande maioria da população é natural que os excessos compensassem períodos endémicos de fome registados na história social de muitas sociedades. Cito aqui um exemplo que ocorreu em Portugal, predominantemente no Alentejo. A seguir ao 25 de Abril que melhorou as condições de vida de milhares de alentejanos, trabalhando anteriormente na agricultura com salários baixíssimos,estes tenderam a alimentar-se em excesso e como também passaram a ter horários de trabalho mais curto, gerou-se a obesidade em grande parte da população. Segundo a análise de uma médica portuguesa, Drª Isabel do Carmo, reconhecida em Portugal por ser especialista nesta área: “Os alimentos que se utilizavam raras vezes ao ano em períodos de festa (carnes de porco e doces por exemplo) passaram a ser consumidos numa base diária”. Se acrescentarmos que a maior parte do “processamento industrial” de alimentos é feito numa base competitiva, oferecendo alimentos o mais baratos possível mas desequilibrados para a alimentação humana, com nota especial sobre os refrigerantes que são “quase veneno” e se pensarmos no efeito da publicidade sobre os hábitos alimentares, percebemos porque a sociedade brasileira (mas também a norte-americana) e a maior parte das europeias, enfrentam hoje um problema gravíssimo de saúde pública. É sabido que uma população obesa sofre de diabetes, de doenças do sistema circulatório, entre outras, enche os hospitais e falta ao trabalho com frequência, reduzindo a produtividade global do país o que não deixa de ser um efeito colateral importante, mas sobretudo “só pode ser infeliz”. Ora não é isso que melhora a sociedade em geral. Uma coisa que o seu trabalho não reflecte é a idade morriam as “banhistas” de Renoir e que profissão normalmente tinham. Para se ser bem nutrido, no tempo de Renoir, ou se era rico, ou se tinha uma profissão que remunerava bem o uso do corpo bem arredondado. O tema tem muitas facetas e apenas aqui afloro algumas mais importantes.
Oi, José. O texto não faz, de forma alguma, apologia à obesidade. O objetivo é discutir os atuais padrões de beleza, que são inatingíveis para a maioria das pessoas. Se a gordura excessiva é prejudicial à saúde, as dietas muito restritivas, pobres em nutrientes, também o são. O blog não tem a pretensão de explorar todos os aspectos que envolvem essa questão – nem teria como fazê-lo -, buscando apenas estimular a reflexão a respeito dos modelos estéticos que nos são impostos pela sociedade.