O dever de ser bela…

Ainda hoje, a sociedade acredita que as mulheres foram feitas simplesmente para embelezar o mundo. É imperativo ser: jovem, bonita, elegante e magra. A piadinhas e comentários maldosos em relação às “feias” são comuns. Essa pressão não é nova, confira neste artigo de Mary del Priore:

A segunda metade do século XIX foi marcada pela presença do romantismo na literatura e, por conseguinte, de imagens românticas associadas às mulheres. Movimento que atingiu, sobretudo, as camadas letradas no Brasil, o romantismo propunha como atitude certa prostração exibicionista, a exaltação fervorosa do eu, a excitação sentimental. Tais sentimentos desdobravam-se na valorização da tez espectral, marmórea, de reflexos verdes ou azuis, a propalada “fronte ebúrnea”, cantada por poetas como Alberto de Oliveira. Essa face de esfinge era percebida como reflexo do fogo interior, do destino vencido pelas doenças que grassavam: tísica, anemia ou tuberculose. O ar lânguido era também o da fatalidade.

O interessante é que não faltaram receitas de beleza para dar realidade a tais representações. Uma cosmética à base de óleos de cacau, máscaras à base de sangue de galinha, urina de criança de peito ou excrementos agilizavam a obtenção da palidez elegíaca, cantada em prosa e verso. Para ajudar a expressão dos sentidos, a maquiagem ganhava relevo.

Um doce olhar de bondade deveria se diferenciar daquele inflamado de paixão. A pergunta que as mulheres se faziam diante do espelho era: “Como dar um ar mais sedutor a esse rosto apagado?!”. Um produto ceroso, feito à base de amêndoas doces e aromatizado com essência de rosas, garantia lábios pouco coloridos, porém apetitosos. Pós e lápis pretos, feitos com carvão, terras escuras ou outros colorantes escuros, delineavam, sem exagero, os olhos.

Ao lado dos esforços para aproximá-las de uma heroína romântica havia, contudo, outro movimento a impelir as mulheres. Desde o início do século, na Europa, multiplicavam-se os ginásios, os professores de ginástica, os manuais de medicina que chamavam atenção para as vantagens físicas e morais dos exercícios. As ideias de teóricos importantes como Sabbathier, Amoros, Tissot ou Pestalozzi  corriam o mundo. Uma nova atenção voltada à análise dos músculos e das articulações graduava os exercícios, racionalizando e programando o aprendizado. Não se desperdiçava mais força na desordem de gesticulações livres. Os novos métodos de ginástica investiam em potencializar a força física, distanciando-se do maneirismo aristocrático da equitação ou da esgrima, ou da brutalidade dos jogos populares.

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Nos finais do século, mulheres começaram a pedalar ou a jogar tênis na Europa. Não faltou quem achasse a novidade imoral, uma degenerescência e até mesmo pecado. Perseguia-se tudo o que pudesse macular o papel de mãe dedicada exclusivamente ao lar. Era como se as mulheres se apropriassem de exercícios musculares próprios à atividade masculina. Algumas vozes, todavia, levantaram-se contra a satanização da mulher esportiva. Médicos e higienistas faziam a ligação entre histeria e melancolia – as grandes vilãs do final do século – e a falta de exercícios físicos. Confinadas em casa, diziam, as mulheres só podiam fenecer, estiolar, murchar. Era preciso oxigenar as carnes e se alegrar, para dar equilíbrio saudável ao organismo. O esporte seria mesmo uma maneira de combater os adultérios incentivados pelo romantismo. Afinal, encerradas ou aprisionadas, só restava às mulheres a sonhar com amores impossíveis ou tentar seduzir o melhor amigo do marido.

A elegância feminina começou então a rimar com saúde. Se a mudança ainda se revelava hesitante, não demorou muito a se instalar e a se tornar inexorável. O leitor, contudo, deve estar se perguntando como se passaram tais transformações entre nós.

As mulheres da elite sempre montaram a cavalo. A equitação, como esporte, foi praticada por uma parcela importante da aristocracia, sobretudo durante o reinado de dom Pedro II. Ao ser recebido em Petrópolis em abril de 1872, o monarca teve à sua espera “as amazonas da Corte!”. “Elegantes enchiam as estradas com suas plumas rogaçantes, em fogosos corcéis, deixando voar nas lufadas de vento indiscreto as fímbrias do vestido revolucionário”, conta um memorialista. A própria Condessa de Barral, paixão de dom Pedro II, era conhecida como amazona intrépida, capaz de se precipitar a galope sobre vacas fugidas. Gilberto Freyre acrescenta que, desde os finais do século XIX, a ginástica sueca concorria para dar maior vigor aos brasileiros crescidos nas cidades, sem a vantagem dos banhos de rio, dos passeios a cavalo e da vida ao ar livre em fazendas e engenhos.

Mas o Brasil onde o corpo feminino começa a se movimentar em direção aos esportes já não é mais o do fim do Segundo Reinado. É o do início da República, no qual as cidades trocavam a aparência paroquial por ares cosmopolitas; nelas, misturavam-se imigrantes, remanescentes da escravidão e representantes da elite. Nesse cenário, nascia uma nova mulher.

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“Hoje em dia, preocupada com mil frivolidades mundanas, passeios, chás, tangos e visitas, a mulher deserta do lar. É como se a um templo se evadisse um ídolo. É como se a um frasco se evolasse um perfume. A vida exterior, desperdiçada em banalidades é um criminoso esbanjamento de energia. A família se dissolve e perde a urdidura firme e ancestral dos seus liames”, recriminava um editorial da Revista Feminina em agosto de 1890.

Ela abandonara os penteados ornamentais com ondas conseguidas graças aos ferros de frisar para cortar os cabelos à garçonne. O esporte, antes condenado, tornara-se indicativo de mudanças: “Nosso fim é a beleza. A beleza só pode coexistir com a saúde, com a robustez e com a força”, alardeava o autor de A beleza feminina e a cultura física em 1918. A revolução dos costumes começou a subir as saias, e essas brigavam com as botinhas de cano alto que, por sua vez, procuravam cobrir o pedaço da canela exposta.

A cintura de vespa, herdada do século anterior, continuava aprisionada em espartilhos. Esses, contudo, haviam melhorado. O dissimulado instrumento de tortura, feito de pano forte e varetas de barbatana de baleia, tão rígidas a ponto de sacrificar o fígado e os rins, mudou. Era, agora, feito de varetas flexíveis de aço. A partir de 1918, ao final da Primeira Guerra, as chamadas “exuberâncias adiposas” passaram a ser contidas não mais pelo terrível espartilho, causador de danos irreparáveis, mas pelo “corpinho” ou pela cinta elástica. Se os primeiros salientavam os seios como pomos redondos, o corpinho os deixava mais livres e achatados.

“Artigos sanitários”, antes desconhecidos e que atendiam pelos insólitos nomes de Kotex, Kez e Modess, anunciavam o fim do tabu da menstruação nas revistas femininas. Vendidos à dúzia, eram complicadas “toalhas higiênicas com franjas”, serviettes esterilizadas, “calças sanitárias em borracha e marquisette, rematada com debruns de borracha”, “cintos para serviettes”. Catálogos de roupas brancas, feitas por sofisticadas bordadeiras, revelavam que a vida no quarto de vestir e de dormir ganhava novos contornos. Contrariamente às antepassadas, capazes de passar os dias em roupão branco e desgrenhadas, a mulher dos anos 1920 parecia querer seguir à risca os conselhos da Revista Feminina, em que a articulista Henriette admoestava:

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Como então, há algumas leitoras que andem em casa sem meias? Há pelo menos 60% de senhoras casadas que pelo menos até a hora do almoço, ficam com o chinelo com que se levantam, o cabelo amarrado com uma fitinha e um roupão “saco” à vontade do corpo! […] Devemos lembrar-nos que nós, mulheres, fomos criadas para a fantasia. Todas as vezes que nos mostrarmos muito materiais perdemos o encanto que nos acham os homens.

Para além do “corpinho” e de cintas, o corpo começava a se soltar. O famoso costureiro francês Paul Poiret rompia com o modelo de ancas majestosas e seios pesados para substituí-lo por outro. No início do século XX, teve início a moda da mulher magra. Não foi apenas uma moda, mas também o desabrochar de uma mística da magreza, uma mitologia da linha, uma obsessão pelo emagrecimento; tudo isso temperado pelo uso de roupas fusiformes.  O “tamanho”, ou seja, rubrica que passa a determinar a largura e a conformação do corpo em relação à roupa, torna-se uma espécie de forma anatômica. Além de constrangimento moral e não apenas corporal, o tamanho traduzia, num martírio mental e não mais físico, a linha de demarcação que passara a reprovar e estigmatizar toda mulher que o extrapolasse. “Dê-me um maior esse não é o meu tamanho!”, passava a ser triste confissão.

Na Europa, de onde vinham todas as modas, a entrada da mulher no mundo do exercício físico, do exercício sobre bicicletas, nas quadras de tênis, em piscinas e praias trouxe também a aprovação de corpos esbeltos, leves e delicados. Tinha início a perseguição ao chamado enbompoint – os quilinhos a mais –, mesmo que discreta. O estilo “tubo” valorizava curvas graciosas e bem lançadas.

Alguns médicos se rebelavam contra a moda de tendência masculina, que associavam a ideias feministas e ao desprezo pela maternidade. Os cabelos curtos, as pernas finas, os seios pequenos eram percebidos por muitos homens como negação da feminilidade. O movimento, contudo, estava lançado. Regime e musculação começavam a modelar as compleições longilíneas e móveis que passavam a caracterizar a mulher moderna, desembaraçada do espartilho e, ao mesmo tempo, da gordura decorativa. As pesadas matronas de Renoir foram substituídas pelas sílfides de Degas. Insidiosamente, a norma estética afinava, emagrecia, endurecia, masculinizava o corpo feminino, deixando a “ampulheta” para trás. – Mary del Priore.

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“Mulher ao espelho”, de Ticiano.

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