O culto ao corpo: sofrimento e frustração

Nos anos 1970, desembarcaram no Brasil, com as bonecas Barbie, numerosas máquinas e técnicas do corpo, instrumentos de um verdadeiro marketing de vivências corporais: o body business. Passava-se de uma estética para uma ética feminina, que obrigaria a mulher a se responsabilizar pelo próprio envelhecimento. O corpo numa sociedade de abundância industrial tinha uma nova tarefa: ser um corpo consumidor e, pior, consumidor em cada uma das partes individualizadas e cuidadas. Para as unhas, esmaltes e lixas. Para os cabelos, xampus, tinturas, secadores. Para o corpo, bronzeadores, hidratantes, sabonetes cremosos e desodorizantes.

Difundindo padrões de beleza, as imagens publicitárias de produtos nunca dantes vistos refletem-se no público feminino. De modo irônico, diz a psicóloga Joana Novaes, trata-se de um corpo que, ao buscar incessantemente sua originalidade, apaga-se no coletivo dessa busca, pois esta se transforma em regra. De maneira dramática, a busca sempre se referirá a um ideal inatingível, uma vez que as imagens veiculadas nada têm de humano, e a promessa de felicidade absoluta, plenitude e intemporalidade aí contidas empurram as mulheres para a impossibilidade de se adequar aos novos padrões estéticos. A publicidade embute, em relação a essas que não se encaixam aos padrões, uma ideologia de fracasso, de impotência perante o próprio corpo.

A indústria cultural ensina às mulheres que cuidar do binômio saúde-beleza é o caminho seguro para a felicidade individual. É o culto ao corpo na religião do indivíduo, em que cada um é simultaneamente adorador e adorado. Mas o culto não é para todos – o tal corpo adorado é um corpo de “classe”. Ele pertence a quem possui capital para frequentar determinadas academias, tem personal trainers, investe em body fitness, sendo trabalhado e valorizado até adquirir as condições ideais de competitividade que lhe garantam assento na lógica capitalista. Quem não o modela está fora; é excluída.

O artifício é inteligente em termos econômicos, uma vez que insere em outro tipo de mercado consumidor toda uma camada da população feminina privada dos serviços de academias de ginástica e de práticas dispendiosas, explica Joana Novaes.  A beleza moderna, longe de prometer compensação à mulher, aprofunda sua frustração e impotência em face da imagem ideal. Ela passa a ser mais algoz de si mesma, desenvolvendo uma relação persecutória contra o próprio corpo. Cada ruga, cada grama levam-na ao desespero. Aprisionada às máquinas, ao personal trainer, às drogas anabolizantes, essa mulher se vê como escrava da imagem de Barbies, Xuxas, celebridades e quejandos. É cada vez mais aquilo que o outro quer, precisa ou permite que ela seja. Pior: transformada em miragem, não é o que se vê, mas o que se quer ver.

O fim do século XX inventou um narcisismo coletivo. A beleza instituiu-se como prática corrente; pior: ela consagrou-se como condição fundamental para as relações sociais. Banalizada, estereotipada, ela invade o cotidiano através da televisão, do cinema, da mídia, explodindo num todo – o corpo nu, na maioria das vezes –, ou em pedaços – pernas, costas, seios e nádegas. Nas praias, nas ruas, em estádios ou salas de ginástica, ela exerce uma ditadura permanente, humilhando e afetando os que não se dobram a seu império.

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Em resposta às questões de Joana Novaes, muitas mulheres mostram-se participantes desse modelo:

“Já tomei de tudo: bomba, aminoácido, fat burner e, além disso, me trato com ortomolecular, onde comecei a tomar minerais, antioxidantes e vitaminas. (…) Eu, por exemplo, não gostava do meu nariz; fiz plástica. Achava que tinha uma bola nos quadris, lipoaspirei o culote. Achava que tinha seios pequenos demais, virei Barbie, taquei silicone. Não queria esperar o meu cabelo crescer, coloquei um Mega hair. Mas hoje só consumo o que é realmente necessário pois não dá para bancar tudo“.

Outra comenta:  “O que não suporto é gente se lamuriando insatisfeita com o próprio corpo, mas que não faz nada a respeito. No meu caso, quando começar a sentir que tem algum excesso, vou me cortar”. Outra mulher afirma: “Minha autoestima melhorou muito com esse lance de preocupação com o corpo. Mas não é só isso. É toda uma postura, uma forma de encarar a vida sempre light, contra o baixo-astral. Isso tudo acredito que tenha ajudado a atrair mais homens, sobretudo, os gatinhos mais jovens”.

E há ainda outros relatos: “Quando venho malhar e mantenho o meu peso ideal tá tudo azul, saio, me divirto, levo uma vida normal. Quando não, é depressão na certa, não me relaciono nem com meus filhos”; “Ah! Mas isso tudo não é para agradar os outros… é para eu me sentir melhor comigo mesma, mais feliz. É felicidade irrestrita, entende?”.

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Segundo Novaes, para as entrevistadas (mulheres na faixa etária entre 16 e 48 anos), “malhar” está associado à saúde, porém o conceito de saúde refere-se, ele mesmo, às melhorias estéticas. Implícita nessa associação existe a construção social de uma identidade feminina calcada quase exclusivamente na montagem e escultura desse novo corpo. Ou seja, um corpo cirúrgico, esculpido, fabricado e produzido, corpo que é centro das atenções e objeto-fetiche de consumo.

A beleza, nesse contexto, explica-nos ela, deixa de ter como função mostrar as características essenciais das mulheres e passa, cada vez mais, a seguir modelos menos diferenciados entre homens e mulheres – o modelo andrógino. É na “bundinha definida”, ou seja, no bumbum arrebitado e bem trabalhado, que se cruzam dois ideais: o de valorização masculina de beleza de uma parte do corpo e a construção social da feminilidade como corpo. Por consequência, a mulher fica diante de dois modelos inatingíveis: o primeiro referido ao modelo masculino do corpo, anatomicamente impossível de ser alcançado; o segundo, referido às modelos fotográficas.

Ora, tais corpos, como explica a psicóloga, colocam distância entre real e imaginário. Sim, pois o que as fotografias propõem são corpos idealizados, abstratos, inatingíveis e mesmo eternos – corpos que não são submetidos à dor, ao envelhecimento e muito menos à morte. O que muitas vezes poderia ser encarado como uma das maiores possibilidades do feminino, qual seja, a vivência da dor, do corpo em sua interioridade, em função da anatomia, foi sempre ocultado, não valorizado e, muitas vezes, tido como vergonhoso. Dessa maneira, em vez de se apropriar do que, até por essência, seria da ordem do feminino, a mulher contemporânea investe na exterioridade do corpo, deixando-se aprisionar pelo mito imposto da juventude eterna – é prisioneira no próprio corpo.

Professora do Departamento de Psicologia da PUC-RJ e psicanalista, Dirce de Sá Freire Costa, ao refletir sobre as relações homem e mulher nessas circunstâncias, acrescenta:

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“Não é dessa mulher plastificada que ouvimos falar em nossos consultórios. Os clientes adultos masculinos nos falam de companheiras de carne e osso, ao contrário do que querem os meios de comunicação, e muito provavelmente o círculo de amigas e conhecidas que legitimam esse (falso) desejo de manterem um corpo esculpido de acordo com o modelo Barbie de consumo. As mães desses homens adultos, que exercem uma grande influência sobre suas escolhas amorosas, não partilhavam dessa estética perversa que veste com uma grande camisa de força o imaginário de suas mulheres e companheiras. Percebo uma tentativa, na maioria desses clientes, de provar para suas companheiras que estão satisfeitos com seus corpos, que chegam mesmo a achá-los belos. Mas eles não são sequer ouvidos, pois suas afirmações soam ao ouvido delas como um reles afago numa ferida narcísica, não podendo tais afirmações serem consideradas como verdadeiras”.

Convertida em discurso, a beleza inunda a imprensa, confiando às imagens a representação incessante e exorbitante de suas graças. Manequins, atrizes e modelos fotográficos ditam o padrão a ser seguido diariamente. Vidas e corpos passam a fazer parte do imaginário feminino por meio de entrevistas na imprensa, biografias e sites. Não há beleza sem saúde – eis de onde vem o primado da forma, do shape, do fitness, primado chancelado por profissionais da área.

Especialista no estudo de revistas femininas, Selma Garrini diz que elas têm papel fundamental na vigilância e reconstrução do corpo feminino. Títulos imperativos repetem palavras nas capas; em todas uma promessa de milagre: “Reduza seu manequim”, “Pílulas vão deixar cabelo e corpo perfeitos”, “Emagreça andando com seu cachorro”.

“Estar em forma” é fetiche que mudou a maneira de viver e pensar, inaugurando condutas que se estendem, inexoravelmente, às camadas subalternas da população. As academias, em bairros chiques, convivem com incipientes sucedâneos em favelas, segundo Joana Novaes. A visão de classe do corpo da bela rica será, em pouco tempo, a visão de um corpo estandardizado. Para concluir: o terrível é que, de maneira geral, pobres e ricas, bonitas ou feias, as mulheres parecem se condenar a ser apenas um corpo, seu corpo. – Mary del Priore

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Mulheres plastificadas X Mulheres reais?

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