O cotidiano nas fazendas de Minas Gerais no século XIX

Em São João del-Rei, o mobiliário era pobre. Nas salas, onde se recebia visitas, espalhava-se um par de bancos, uma mesa, algumas camas desarmadas, tamboretes. Distribuídos na parede de pau a pique, cabides onde se penduravam todo o tipo de acessórios: de roupas a utensílios domésticos ou de trabalho. Essas raramente recebiam uma mão de cal. Enorme talha com caneco de ferro dava água fresca a beber. Os quartos foram comparados por Burton a covis: imundos, com chão de terra batida e os tetos em estilo mineiro, ou seja, de esteira: simples tiras de taquara cruzando-se em ângulo reto. As camas tinham, por toda a cobertura, um pedaço de chita colorida que não protegia do frio.

Dormia-se mal, mas comia-se razoavelmente. Na fazenda do capitão-mor de Tamanduá, Saint-Hilaire foi recebido com “perfeita cortesia”. A comida era abundante e seria considerada excelente em qualquer país. “Diante de cada conviva, havia um garrafão de Vinho do Porto de ótima qualidade, acompanhado de pãozinho saborosíssimo o que era realmente uma raridade […] A fartura da mesa não condizia, contudo com o aspecto da casa”.

Burton, por sua vez, queixou-se que, quase sempre comia mal. Só, na região de Mariana, o cônsul foi excepcionalmente servido de porco, ovos quentes, galinha com arroz, tutu de feijão temperado com toucinho – conhecido pelos estrangeiros como “cataplasma” de feijão” -, tudo regado a molho de pimenta. De sobremesa: canjica, milho cozido e doces. A primeira era temperada com rapadura e servida com marmelada  ou goiabada, acompanhada de queijo. O vinho, chamado “de Lisboa”, era um rum de melaço. “Toda a refeição termina com uma xícara de café”, informou. Presente também, a “jacuba”: um alimento de escravos consumido por todos. Consistia em farinha de milho misturada com rapadura e água fria. E a “mexeriboca”,  um misto de carne, arroz, feijão, farinha, mexido e consumido com colher. Cerveja e vinhos encontravam-se nas despensas de engenheiros estrangeiros, vindos para trabalhar nas velhas minas. Luccock teve a oportunidade de degustar “vinte e nove variedades de frutas” servidas em compotas. Maravilhou-se! Langsdorff provou algo novo: pipoca frita com banha. Os escravos eram mal alimentados com farinha de milho misturada à água quente na qual se punha um pedaço de toucinho ou de peixe seco. À noite, comiam feijão.

Ver mais  Já existia sobremesa nos tempos coloniais?

Nas refeições, distribuíam-se as panelas onde os alimentos tinham sido cozidos e pratos de estanho e barro. Cada um servia-se à vontade.  Espalhava-se farinha de milho sobre a mesa, para ser servida com a comida contida nas travessas. O naturalista austríaco João Emanuel Pohl notou o luxo dos detalhes: pratos de louça inglesa, guardanapos, talheres de parta, copos e bacia para lavar as mãos e boca, depois das refeições. Foi exceção!

Dentre as atividades diárias da fazenda, uma ocupava os homens: fazer queijo. O leite era tirado colocava-se nele o coalho, que o fazia talhar instantaneamente. O mais comum era o de capivara, por ser o mais fácil de encontrar. As formas de madeira e de feitio circular tinham o espaço livre interno mais ou menos do tamanho de um pires. Essas formas eram colocadas em uma mesa estreita de tampo inclinado. O leite talhado era colocado dentro delas em pequenos pedaços até enchê-las. Em seguida, espremia-se a massa com a mão e o leite escorria para dentro de uma gamela colocada embaixo. Compactava-se colocando mais e mais massa talhada. Cobria-se de sal a parte superior durante doze horas. Virava-se o queijo, salgando do outro lado. Na manhã seguinte, arrumavam-no em lugar sombreado, sendo virado de tempos em tempos por oito dias. Estava pronto. O sabor era suave e agradável, segundo Saint-Hilaire. Transportados para o Rio em jacás, de bambus grosseiramente trançados, cada cesto continha 50 queijos. Dois cestos constituíam a carga de um burro.  Autoridades costumavam “furar” os queijos que passavam pelos Registros, em busca de ouro e diamantes.

Nas fazendas onde se criavam carneiros, esses eram tosados duas vezes por ano: no mês de agosto, ao fim da temporada de inverno, e seis meses depois, antes da seca. Aproveitava-se a lã para fazer tecidos grosseiros com os quais se vestiam os negros. Ela também era empregada no fabrico de chapéus de abas largas com copa baixa e arredondada, muito usada pelos mineiros. Espessos e pesados protegiam contra os ardores do sol. Havia mulheres hábeis capazes de fazer tecidos diferentes deste tipo de lã, ganhando assim sua vida.

Ver mais  Pequena história da alimentação

Junto com a lã, cultivava-se linho e algodão que eram fiados em teares. Cobertores de algodão lavrados com flores, quadrados e cruzes coloridas era produto desta indústria doméstica. Em Tapera, arraial do distrito de Diamantes, o mesmo Saint-Hilaire apreciou o trabalho dos teares capazes de fabricar toalhas, lençóis e colchas vendidos na região ou exportados para a Corte. Em Minas Gerais, não só se fiava como se tingiam tecidos. Quanto às cores, o branco era feito de cal, o vermelho e amarelo, de argila e o rosa e azul, de substâncias vegetais.  O corante era fixado com ajuda de urina.

A esse trabalho feminino juntavam-se outros: mulheres, livres ou escravas, eram empregadas na casa e nos afazeres domésticos: levavam milho para a moenda, cozinhavam comida para os porcos, ocupavam-se da cozinha, da roupa, de espalhar o feijão, de cozinhar óleo, fazer farinha, dar comida às galinhas, entre outras tarefas “miúdas”.

Exemplo de uma delas? A salga do porco: torrava-se a pedra de sal numa vasilha, punha-se o sal no fogo até que se reduzisse a pó fino, esfregava-se bem a carne, cortando-a transversalmente, para que o sal penetrasse no toucinho. Outra: a fabricação de óleo com o coco-de-catarro. Ele era colhido e deixado para decompor-se. A seguir, amassado e espremido. Do óleo, fazia-se sabão ou velas e tratava-se o couro usado em outras atividades.  Outra ainda: a fabricação de cigarros de milho enrolados em folhas do mesmo vegetal e amarrados com fitas coloridas em maços pequeninos, como viu fazer Marianne North. Panelas de pedra sabão ou louça grosseira – pratos, tigelas, moringas e bilhas – de argila, também podiam ser confeccionadas na zona rural, informa-nos Lima Júnior. Para torná-las menos frágeis, eram cobertas com uma camada de verniz espesso. Se quebrassem, o sumo do cipó-jibóia colava as partes.

Ver mais  Grandes mulheres, pequenos negócios

Nas casas de fazenda, não faltavam pequenos canteiros, cultivado por mãos femininas. Num vicejava a malva cheirosa, o alecrim, o manjericão levados para as Minas pelos aventureiros de 1700. Noutro, a botica doméstica: a macela galega, o poejo, a cânfora herbácea, a artemísia curavam o febres, catarros, dores de estômago. A arruda africana neutralizava o mau-olhado e às sextas-feiras queimavam-se folhas de “guiné”. Purgativos? A cagaita e o caju. Rosmaninho e outras ervas odorantes afugentavam insetos e davam “bons ares” nos cômodos. O óleo de copaíba extraído da planta que “chorava no mês de agosto”, era ideal para pisaduras de animais. Aos doentes se alimentavam de galinhas, carne de vaca fresca e um medicinal copinho de cachaça. No século XIX, o uso da homeopatia tornou-se moda até nessas longínquas paragens. A presença de gado bovino introduziu várias crenças ligadas à valorização da saúde: pedra do bucho afastava qualquer dor. Chá de bosta curava coqueluche.  Chifre de boi preso na cerca preservava do mau olhado.

Nas propriedades próximas aos rios como, por exemplo, a Fazenda da Carreira Comprida no caminho de Curvelo fabricavam-se armadilhas para pegar abundantes peixes. O curral e o jequi, cesto cônico de taquaras seguro com cipós e presos a estacas eram muito eficientes. A grozeira constituía-se num sistema de estacas finas, ligadas por lianas, às quais se prendiam linhas e anzóis. O chiqueiro era uma armadilha de taquara que se fechava quando o peixe mordia a isca. Minhocas, sabugos de milhos, ninhos de passarinho e penas eram usados para atrair peixes depois fritos, secos ao sol ou preparados em conservas.

Nas casas de farinha, mulheres livres e escravas cuidavam do descascamento da mandioca, da extração do polvilho e da fabricação de beijus. Já a ralação, prensagem e torração, por exigir força física, era atividade para os homens. Todos garantiam o velho ditado popular: “Onde houver farinha e milho, cada um cria o seu filho”. – Texto de Mary del Priore.

 

 

fazendrugendas
Fazenda retratada por Rugendas.

3 Comentários

  1. Eliana
  2. breno franca

Deixe uma resposta