O Amor e a História, por Mary del Priore

Confira a entrevista concedida pela historiadora e escritora Mary del Priore à revista Cláudia, referente ao livro “História do Amor no Brasil”, da editora Contexto. Segundo Mary, “a história dos amores no Brasil não é só feita de flores, mas, também da dura trajetória de indivíduos que tentaram durante séculos se desembaraçar de preconceitos, proibições e regras, buscando ter um único direito: o de amar”. 

– Em que momento você começou a se interessar pelas páginas da história dos sentimentos?

Interrogar-se sobre o amor é mexer com velhas e boas questões, é puxar o fio cor-de-rosa que amarra a cultura ocidental. Como já disse alguém, “diga-me como amas e dir-te-ei quem és”. Na Europa, historiadores conhecidos e famosos já estudaram o tema. Muitos consideram que o amor romântico, tal como o conhecemos, é um fenômeno tardio. Ele teria surgido, apenas, durante processo de industrialização e urbanização que teve lugar na Europa do século XVIII. Ingleses,como Alan Macfarlane, por exemplo, afirmam que “o amor como base do casamento”, talvez seja a mais importante mudanças ocorrida no limiar da Idade Moderna ou possivelmente nos últimos mil anos da “história ocidental”. Já franceses como Jean-Louis Flandrin – de quem fui aluna e amiga – concordam com que uma “revolução afetiva teria se localizado predominantemente no século XVIII e início do século XIX”, modificando radicalmente os sentimentos amorosos. É como se tivéssemos passado de um período em que o amor fosse uma representação ideal e inatingível, – a Idade Média -, para outra em que vai se tentar, timidamente, associar espírito e matéria, – o Renascimento. Na Idade Moderna, a Igreja e a Medicina tudo fazem para separar paixão e amizade, alocando uma fora, outra dentro do casamento. Deste período, passamos, ao Romantismo, do século XIX, que associa amor e morte, terminando com as revoluções contemporâneas, momento nos quais, o sexo tornou-se uma questão de higiene e o amor parece ter voltado à condição de ideal nunca encontrado.

 

 – O fato de você ser mulher aumentou o seu interesse pelo assunto?

Mulher, sim, mas, sobretudo historiadora. O historiador lida com o tempo, constatando – talvez melhor do que outros profissionais – uma certeza: a de que o tempo não nos pertence. Que da mesma forma como as galáxias estão fora de nosso alcance ou que o universo se expande ou encolhe sem que nada tenhamos a dizer, do mesmo jeito, imperturbável, o tempo se enrola e desenrola sobre si mesmo. O tempo não tem dono. Imortal, ele não pára – cantava Cazuza. Mas sabemos também, que a única forma de esquecer o tempo é o amor. Nele, mesmo adultos nos tornamos crianças. Invertemos, assim, a marcha dos ponteiros do relógio. Buscamos no outro, o que julgávamos perdido ou deixado para trás. Temos a sensação de cada encontro, é um reencontro. Acreditamos como Aristófanes, no mito do Andrógino. Cremos nas metades partidas que se complementam, na junção das partes separadas, na expressão do amor na continuidade, enfim, cremos no infinito do tempo. E ao lidar com o tempo, voltamos à história.

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– Existe ainda algum preconceito em relação a esse tema no campo das pesquisas históricas?

Há vários assuntos que são considerados “não sérios” ou importantes o bastante na Academia, mas como eu digo na epígrafe, citando Bertrand Russel, que meu livro não é endereçado aos que “ julgam que um problema prático não é tema de conversa”. Mas nele não faço uma história de um sentimento indescritível e aparentemente imutável ao longo dos séculos e das culturas – tema, convenhamos, muito amplo. Mas sim, analiso as maneiras pelas quais se dizia e se representavam as formas de amar e de expressar amor no passado. Faço uma história das práticas em torno da vida amorosa: dos gestos, da corte amorosa, do beijo, das palavras, do namoro e do casamento. Penso, contudo, que não há necessidade de justificar a escolha de um assunto que comove apaixonadamente nossos contemporâneos.  Ele tem a ver com este homem total cuja cultura e vida tanto nos interessa. No passado, o assunto só era mencionado para descrever os amores de tal rei ou o adultério de tal rainha. Esta substituição da diversão pela análise histórica nada tem a ver com as necessidades comerciais do mundo da edição. Ela responde, sim, ao imenso interesse que invade o observador quando este tenta interpretar a complexidade das realidades amorosas de outrora. Só que, mesmo trocando o anedótico pelo estudo sério, estudar a história do amor segue, aos olhos das severas ciências que nos governam, um grave estigma de ligeireza. Azar o delas…

– Esse capítulo da história está ainda está mal contado no Brasil?

Os historiadores brasileiros avançaram muito em estudos sobre a família, o casamento, a mulher e a sexualidade, temas correlatos ao sentimento. Me beneficiei largamente destes estudos, assim como dos de  estrangeiros pioneiros em escrever sobre o amor, como Michel Foucault, Peter Gay a Alan Macfarlane. Outra vantagem são os múltiplos documentos sobre o assunto. É fantástico surpreender entre velhos papéis os jogos amorosos, as estórias de seduzidas e abandonados, as gradações que moldam as formas de dizer o amor, as campanhas amorosas fulminantes ou as guerilhas, cheias de armadilhas dos enamorados do passado. Além disto, contei com uma ampla bibliografia sobre o assunto, pois historiadores brasileiros vêm trabalhando temas correlatos como a família ou a sexualidade. O desafio não foi começar, mas, parar!  Todos sabemos que a pesquisa das intimidades no passado é coisa difícil. O amor não deixa restos, fósseis, marcas. Ele apaga suas pegadas não deixando ao interessado mais do que  ilusões ou evocações, muitas vezes, fugazes. Mas se o trabalho de reconstituição deste passado parece árduo, foi mais uma razão para enfrentá-lo. Com todos os seus riscos. Enfrentei dificuldades para fazer “falar” do amor o povo simples, analfabeto, formado pelos segmentos mais desfavorecidos de nossa sociedade. Gente humilde, sem letras. Recuperar o que sentem e o que pensam sobre o amor é tarefa complicada para o historiador que só os surpreendes graças à documentação da Inquisição ou processos movidos pelo Estado, nos quais emprestam a voz a escrivãos e juízes. Isto sem falar na massa silenciosa constituída por escravos, cujas tradições orais se perderam no tempo.

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 – A literatura científica sobre o amor é pobre comparada com a de outros países? Qual foi o grande marco nesse campo?

Na Europa, sem dúvida, Jean-Louis Flandrin, o primeiro a demonstrar que a Igreja foi a responsável por uma violenta cruzada moral contra a associação entre amor e sexo, entre corpo e alma. O movimento de emancipação de corpos e de espíritos inscreve-se, contudo, na história. Ele começou nas últimas décadas do século XIX, quando as idéias do casamento por amor e da sexualidade realizada se tornaram um dos pilares da felicidade conjugal. Até então, o Ocidente cristão, e nele, o Brasil, vivia uma era de constrangimentos e recalques quase sem limites. Quinhentos anos antes, momento da chegada dos portugueses ao nosso litoral, teólogos fulminavam de suas cátedras contra tudo o que dissesse respeito ao corpo, recusando a noção de prazer e exaltando a virgindade. Esta ética sexual se impôs com maior ou menor rigor, dependendo de épocas e lugares por muito tempo. E ela impregnou as mentalidades. Ao associar sexualidade e pecado – o que se fazia até meados do século passado – ela impedia que amor e sexo se dessem às mãos.

 – Uma das conclusões do seu livro é que o prazer reprimido do passado acabou hoje se tornando obrigatório. O que acontece quando, como você diz, o erotismo acaba entrando para o “território da proeza”?

Especialistas afirmam que hoje queremos tudo ao mesmo tempo: o amor, a segurança, a fidelidade absoluta, a monogamia e as vertigens da liberdade. Fundado exclusivamente no sentimento que sobrou do amor romântico, o sentimento mais frágil que existe, o casal está condenado à brevidade  à crise. Mais. A liberdade sexual é um fardo, para os mais jovens. Muitos deles, têm nostalgia da velha linguagem do amor, feita de prudência, sabedoria e melancolia, tal como viveram seus avós. Hoje, a loucura é desejar um amor permanente, com toda a intensidade, sem nuvens ou tempestades. Numa sociedade de consumo, o amor está supervalorizado. O sexo tornou-se uma nova teologia. Só se fala nisso e se fala mal, com vulgaridade. Sabemos, depois de tudo, que o amor não é ideal, que ele traz consigo a dependência, a rejeição, a servidão, o sacrifício e a transfiguração.  Resumindo: existe um grande contraste entre o discurso sobre o amor e a realidade de vida dos amantes. O resultado? Escreve-se cada vez mais sobre a banalização da sexualidade e o desencantamento dos corações enquanto o amor segue uma coisa sutil e importante que continua a fazer sonhar, e muito, muitos homens e mulheres.

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– O que sobrou do amor romântico nos dias de hoje?

O amor faz parte de nossa vida cotidiana, das imagens e realidades que a cercam. Ele se enraiza  em três palavras  – sentimento, casamento e sexualidade – palavras em torno das quais homens e mulheres procuram se acomodar. Do casamento por interesse ao casamento por amor, do beijo na mão enluvada ao beijo na boca, a história dos amores no Brasil não é só feita de flores, mas, também da dura trajetória de indivíduos que tentaram durante séculos se desembaraçar de preconceitos, proibições e regras, buscando ter um único direito: o de amar. Sendo o laboratório, por excelência de nosso destino e o lugar de todas as contradições, o amor é um tema que nos convida a olhar  nossa sociedade por outro ângulo. Aquele que opõe o amor na vida real e o amor idealizado. O primeiro enraizado numa sociedade biológica e culturalmente mestiça, marcada pelo escravismo e por formas patriarcais de dominação. O segundo, baseado na sublimação, capaz de alimentar um imaginário particular sobre o sentimento amoroso que encontramos, sobretudo, na literatura. Nele, a beleza sustenta o amor na sua dimensão imaginária, ficcional. E não é este imaginário que habita todo o amor? Ele não “é  sempre lindo”?

– Qual a principal conquista dos últimos tempos na história dos sentimentos?

– Em toda a história do amor, o casamento e a sexualidade estiveram sob controle; controle da Igreja, da família, da comunidade. Só o sentimento, apesar de todos os constrangimentos, continuava livre. Podia-se obrigar indivíduos a viver com alguém, a deitar com alguém, mas não a amar alguém. As coisas mudaram. Apesar dos riscos da AIDS, a sexualidade foi desembaraçada da mão da Igreja, separada da procriação graças aos progressos médicos, e mais, ela foi desculpabilizada pela psicanálise e mesmo exaltada. Hoje, a grande ausência de desejo é que é culpada. O casamento, fundado sobre o amor, não é mais obrigatório e ele escapa às estratégias religiosas ou familiares; o divórcio não é mais vergonhoso e os casais tem o mesmo tratamento perante a lei. A realização pessoal se coloca acima de tudo: recusamos a frustração e a culpabilização. Mas tudo isto são conquistas ou armadilhas? Os historiadores de amanhã, o dirão.

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2 Comentários

  1. Erica Cristina
  2. Sara Grinfeld

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