O amor como inimigo

Amores no período colonial vão herdar muito das tradições portuguesas e europeias. Mas elas não serão pura transposição de um mundo, o Velho, para o Novo. Embora tomando parte do processo que então tinha lugar, – aquele de emergência do capitalismo – a América portuguesa tinha especificidades que devem ser levadas em conta, evitando, transposições apressadas. “Viver em Colônias”, como dizia Luís dos Santos Vilhena, professor de latim em Salvador no final do século XVIII, não era o mesmo que viver na metrópole. E as vantagens e desvantagens da vida nos trópicos, deixavam marcas. Por isso mesmo, vale a pena lembrar algumas das características que marcavam as relações sociais e amorosas: a colonização consistiu numa verdadeira cruzada espiritual que tinha por objetivo regulamentar o cotidiano das pessoas pela orientação ética, pela catequese e educação espiritual, além de exercer severa vigilância doutrinal e de costumes pela confissão, pelo sermão dominical e pelas Devassas da Santa Inquisição – que por aqui passou entre os séculos XVI e XVIII. Sua ação fazia-se especialmente ativa no campo da organização familiar e do controle da sexualidade.

A Igreja apropriou-se também da mentalidade patriarcal presente no caráter colonial e explorou relações de dominação que presidiam o encontro entre os sexos. A relação de poder já implícita no escravismo, presente entre nós desde o século XVI, reproduzia-se nas relações mais íntimas entre esposos condenando a esposa a ser uma escrava doméstica exemplarmente obediente e submissa. Sua existência se justificava em cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa e servir ao chefe da família com seu sexo.

A vida rural da maior parte da população, o iletrismo das elites, a falta de bibliotecas e escolas, o escravismo, a formação de famílias mestiças e portadoras de hábitos e valores diversos, o hibridismo cultural irá tingir com cores específicas as representações sobre os afetos e amores. Além destas características, outra, mais importante. Enquanto o Velho Mundo construía, com minúcias o que chamamos de “vida privada”, nicho por excelência das relações amorosas, em Colônias, esta mesma privacidade balbuciava na precariedade do cotidiano. Independentemente de seu requinte ou rusticidade, as casas de outrora, ensejavam, como lembra o historiador Ronaldo Vainfas, pouquíssimas oportunidades de vivências privadas. Vizinhanças de parede e meia, cafuas cobertas de capim, casas senhoriais repletas de agregados, escravos e parentes; enfim, não era sob esses tetos que os amores medravam com liberdade.

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Apesar da população dispersa, a política da metrópole sempre foi de incentivar o seu aumento e de enfraquecer os mecanismos que criassem qualquer dificuldade para o casamento. Num jeu de mot com Fernando Pessoa poderíamos dizer que “Casar era preciso, viver não era preciso”. Mas se as autoridades reconheciam que havia uma lei da natureza que levava os indivíduos de sexo diferente a viverem juntos, para a sobrevivência da espécie, elas distinguiam animais e homens. Nos primeiros, prevalecia unicamente o instinto de preservação. Mas em relação à espécie humana, este instinto podia acarretar más consequências, precisando, portanto, ser controlado por um sistema de regras civis ou religiosas. O instinto sexual não controlado pelas regras do casamento se transformava, como já viu o leitor, em luxúria e paixão nas páginas de moralistas. Ou em doença grave, nas teorias médicas da época. Ao ordenar as práticas sexuais pelos campos do certo e do errado, do lícito e do ilícito, a Igreja procurava controlar justamente o desejo. E a luta pela extinção ou domesticação do amor-paixão, vem na rabeira desta onda.

Ao contrário do que aconteceu na França ou na Inglaterra, onde a história dos sentimentos se fez com exuberância e esteve, a partir da segunda metade do século XVIII, articulada com a emergência do amor romântico e da família burguesa, na Colônia os sentimentos pareciam ligados a sociabilidades tradicionais. Nossas referências amorosas não parecem saídas de um quadro de William Hogarth, onde casais enlaçados contemplam ternamente os filhos brincando em frente à lareira. Aqui, os sentimentos como que transpiravam das comunidades; as casas eram invadidas pelo olhar dos vizinhos, a fala das comadres, os gritos das crianças que circulavam entre os domicílios. Os sentimentos afloravam diretamente da experiência concreta. Não eram pois matizados por referências eruditas embora a poesia deste período mencione “ternas pombas” que se catam ou beijam, ou “olhos que o amor ascende de uma suave chama”.

É de se supor, que, entre as classes subalternas, – exatamente como já acontecia entre camponeses europeus – o exercício da livre escolha do cônjuge, movidos por interesses outros que não as alianças político-econômicas, deixasse aflorar, de maneira mais espontânea, os sentimentos. Nos concubinatos tão disseminados, nas mancebias e amasiamentos – a maioria das relações entre homem e mulher entre nós – se encontram gestos amorosos e expressões de afeto bastante discretos no mais do cotidiano. Estudando documentos da São Paulo colonial, a historiadora Alzira Campos debruçou-se sobre a questão do amor nos casamentos paulistas do século XVIII e detectou a transferência para cá, dos dois arquétipos já vistos nos comportamentos afetivos de outrora: o amor dentro do casamento, casto e continente. E fora dos laços matrimoniais, o amor paixão, a perseguida “luxúria”, os pecados da carne.

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Essa documentação revela que, na América portuguesa, as mulheres casadas mais estimavam do que amavam seus maridos e que o faziam num padrão de comportamento que aparece de forma repetitiva. A esposa devia amar o companheiro “como fazem as boas, virtuosas e bem procedidas mulheres de qualidade”, explicava um juiz eclesiástico em pleno século XVIII. Ao manter o amor fora da relação conjugal, tais esposas estariam sublinhando a superioridade do casamento de razão sobre o coração. Afirmavam, assim uma tradição portuguesa que interpretava o casamento como uma tarefa a ser suportada: “casar soa bem e sabe mal”; “casa de pombos, casa de tombos”, avisavam os ditados populares.

O princípio básico que norteava tal escolha era o da igualdade, claramente enunciado nos tais provérbios: “se queres bem casar, casa com o teu igual”, “casar e comprar, cada um com seu igual”. Mas que tipo de igualdade deveria presidir a escolha do cônjuge? O pregador padre Manuel Bernardes é bem claro: “casem primeiro as idades, as condições, as saúdes e as qualidades; então casarão bem as pessoas; de outro modo, já de antemão levam o divórcio meio feito”. Trata-se portanto de uma igualdade etária, social, física e moral.  Se esta era a norma, qual a prática? A sabedoria popular revela que a igualdade etária, nem sempre era desejável. Vejamos alguns adágios que o comprovam: “Seja o marido cão e tenha pão”, “Mais quero o velho que me honre, que moço que me assombre”, “Antes velha com dinheiro que moça com cabelo”.

No Brasil, a julgar por pesquisas feitas para a vila de São Paulo, o princípio de igualdade etária não se observava no século XVIII; 53% homens eram dez anos mais velhos do que mulheres.  Quanto ao princípio de igualdade de condição, Frei Gaspar da Madre de Deus mostra que houve, também, “desclassificação social”. Paulistas “nobres”, para ficar num exemplo, se viam obrigados a casar fora de sua esfera social. Exemplo disto foi João Pires de Campos que “levado só de indesculpável apetite, desposou uma mulata, causando um geral luto de sentimento entre os seus parentes”. Pelas leis da Igreja, aos catorze anos os rapazes podiam contrair casamento; as meninas estavam aptas a partir de doze anos. Mas esta não era a regra única. No litoral sudeste, segundo a historiadora Maria Luíza Marcílio, os casamentos ocorriam em torno de 21,6 anos para os homens e 20,8 para as mulheres: uma diferença, portanto, menor. Passados os trinta anos, solteiros encontravam grande dificuldade para contrair matrimônio, mesmo o sacramento sendo pouco recebido na Colônia. A maioria da população vivia mesmo – como comprovam dezenas de pesquisas – em concubinato ou em relações consensuais apesar da igreja punir os teimosos com admoestações, censuras, excomunhões e até prisões.

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Casamentos desiguais do ponto de vista social eram mal vistos e os parentes não hesitavam em recorrer à autoridade do governador para impedir tais enlaces. Um exemplo? Ao ter conhecimento da “desordem” que pretendia cometer o irmão cego de um capitão de Jacareí, SP, casando com uma mulata, o governador não só mandou prender a noiva, como deu ordens para a obrigarem a assinar um termo de não casar com o dito indivíduo e mesmo sair da capitania no prazo de dez dias. Quanto ao “noivo” ser-lhe-ia ordenado que não casasse nem com essa, nem com qualquer outra pessoa que desacreditasse seus parentes”. Se não faltava orgulho, também  não faltava também preconceito. Em Sabará, MG, na mesma época quiseram tirar um irmão da Irmandade do Carmo, a mais rica da cidade, por ser casado com uma mestiça. O caso ficou conhecido por historiadores locais como “a infâmia da Mulata”. A escolha do futuro cônjuge, baseada no princípio da igualdade, exigindo do homem um estabelecimento sólido, um modo de vida definido, era, portanto uma questão na qual o entendimento e razão deviam ser guias condutores.

A indissolubilidade do matrimônio, estabelecida pela doutrina da Igreja católica era usada como principal argumento a favor de uma escolha maduramente pensada do futuro cônjuge, escolha feita longe de qualquer entusiasmo ditado pelo interesse físico ou outros. Nada de amor-paixão ou de outro sentimento parecido. – Mary del Priore

costumes Rio- Rugendas

Costumes do Rio de Janeiro, Rugendas.

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