A vida cotidiana do Rio de Janeiro à época dos Bragança

            A transmigração da Corte, de Lisboa para o Rio de Janeiro, provocou transformações significativas na evolução econômica, na vida social e cultural e na estrutura da colônia. Algumas delas atingiram a fundo à sociedade, especialmente no que diz respeito ao poder central, sendo a maior preocupação a de perpetuar no Brasil a estrutura do governo centralizado e o sistema absoluto da monarquia portuguesa. Mas, não só. Outros aspectos da vida de pequenos atores anônimos da história foram, pouco a pouco, sendo modificados por esta – pelo menos para eles – “inesperada” viagem. Foram raros os estudos realizados sobre a vida cotidiana neste período para que pudéssemos constatar o impacto que significou uma tal ruptura no horizonte dos personagens locais. Afinal, num certo março de 1808, a Colônia amanheceu Metrópole. Mestiçou-se mais ainda. Para usar uma expressão e um conceito caros à Serge Gruzinski, a colônia globalizou-se. A Europa se fundiu mais ainda à América, já africanizada.

            Quando os Bragança desembarcaram no Rio de Janeiro, a cidade era, então, considerada um dos portos coloniais mais bem localizados do mundo. As facilidades de intercâmbio com a Europa, América, África, Índias Orientais e as Ilhas dos Mares do Sul indicavam, – segundo o Marques de Alorna, veador da Casa Real, – um grande elo de união entre o comércio das variadas regiões do globo. Dominando vastos recursos, precisava apenas de um governo eficiente, que lhe desse prestígio político. A transmigração, realizada em março de 1808, parecia consolidar o sonho do renomado marechal-de-campo e conselheiro de D. João.

A realidade se impunha rapidamente. Muitos viajantes vindos de cidades européias registraram em seus diários e anotações impressões sobre um panorama material e cultural dos mais desoladores. Pouco tempo havia que os senhores de terras, plantadores e agricultores ricos, tinham saído de seu exílio, deslocando-se do interior ou de pequenas cidades onde viviam, atraídos pelo brilho do porto do Rio de Janeiro e do que viria ser a nova Corte. Nas crônicas de viagem, as primeiras observações sobre a vida material, eram sempre, ou quase sempre, desabonadoras.

Apologistas da europeização como o Padre Luís Gonçalves dos Santos, mais conhecido como Padre Perereca, criticavam tais “bisonhos e antigos costumes que só se podiam tolerar nesta porção da América e que não estavam mais em uso entre povos civilizados”. De fato, podiam parecer bisonhos os costumes esses de morar em ruas estreitas em meio às quais corria um canal de águas servidas. Ruas cheias de edifícios “no geral, de dois pavimentos…as paredes são bem construídas de granito; as soleiras, umbrais, vergas e  esquadrias  são de quartzo maciço, trazido da Bahia. Os tetos são cobertos por telhas tubulares. O pavimento inferior é, em geral, ocupado pela loja ou armazém; o segundo e o terceiro quando existe, pelos aposentos da família para cujo acesso existem corredores estreitos e compridos..” conta-nos o comerciante inglês John Luccok que desembarcara no Rio em 1808, com a intenção de mercadejar. . Sempre focados no cenário arquitetônico, os prussianos Von Leithold e Von Rago queixavam-se que o único passeio para os habitantes era uma praça junto ao mar que pelo traçado dos canteiros, mais parecia uma horta! Mas, dizia Schlichthorst, ex-tenente de granadeiros alemães do exército imperial,  depois da vinda de D. João VI as casas já ganharam mais um ou dois andares. E Ernest Ebel, viajante austríaco, acrescentava que algumas possuíam gradis dourados à imagem de balcões franceses. Apenas sete anos depois do desembarque, a cidade já tinha se transformado, graças a melhoramentos em toda a capital.

Mudanças? Sim. Antes da presença da família real, chamava atenção à proeminência das janelas superiores feitas de treliça, o muxarabiê de influência oriental, cujos interstícios serviam para a passagem de ar. Contudo, tais janelas tornavam as ruas sombrias, tendo pois D. João, então Regente, mandado reduzi-las a balcões modernos, abrindo mercado direto para os vidros vindos de Manchester. À noite, as ruas passaram a ser relativamente bem iluminadas por inúmeros lampiões e viam circular patrulhas de três a quatro soldados., refletindo a presença da recém-criada Intendência Geral de Polícia da Corte. Palavras como “civilidade” e “urbanidade” foram incorporadas ao cotidiano graças a esta força que cuidava, também, do abastecimento, de obras públicas e da segurança individual e coletiva.

Mas registradas as impressões sobre os monumentos de pedra e cal, o quê dizer das atividades e da gente que aqui morava? A repetição que marcava a construção do cotidiano da maior parte dos moradores da Corte, tinha seu ritmo. Interesses, exigências e necessidades moldavam a passagem do tempo: “Bem cedo, às cinco horas começa o espetáculo. Primeiro um retumbante tiro de canhão da Ilha das Cobras estremece as janelas e obriga-me a despertar conquanto a escuridão ainda seja total. Às cinco e meia, um corneta da guarda policial, vizinha, soa a alvorada de maneira dissonante! Logo a seguir badalam os sinos por toda a cidade, especialmente os da Candelária, tão ruidosa e demoradamente como se quisessem acordar os mortos. Nos dias santos, soltam rojões às dúzias para que os fiéis não durmam à primeira missa. Às seis em ponto passam os presos a buscar água, rangendo as correntes. Os papagaios, de que as redondezas estão cheias, soltam seus gritos estridentes e antes mesmo das sete, a ralé dos cangueiros e vendilhões já está de pé a tagarelar e berrar”, conta-nos Ernest Ebel.

O mesmo horário rígido marcava, também, o dia-a-dia dos ambulantes. As vendedoras de café, saíam às ruas as seis da manhã e permaneciam até as dez. Os vendedores de capim paravam de circular também as dez e daí para frente só exerciam suas vendas na Praça do Capim. As vendedoras de pão de ló tinham que fazê-lo antes da ceia, ou seja, do almoço.

Impressionava o número de negros escravos e livres circulando pelas ruas, dando aos forasteiros a impressão de ter desembarcado na África. Mas não era só de lá que esses chegavam, vindos da Costa da Mina, Congo, e mais tarde, Moçambique e Angola. Também negros, escravos ou libertos, vindos, por exemplo, da América espanhola e confundidos aos trabalhadores livres misturavam-se no labirinto da cidade. Entre eles, ranchos de audaciosos capoeiras cruzavam a Candelária armados de paus e facas, exibindo-se num jogo atlético apesar das penalidades impostas – muitas chibatadas aos escravos que “capoeirassem”. Carregadores e mulheres ambulantes, ligeiramente vestidas, transportavam toda a sorte de mercadoria na cabeça: frutas, animais vivos, pacotes, feixes de fumo, água potável, roupas sujas e limpas, tigres com excrementos.

Não era uma massa uniforme como parecem enxergar os estrangeiros, esta que se exibia, oferecendo serviços. Nela, os indivíduos se identificavam pelos sinais de nação, talhos e escarificações no corpo ou na face, os cuidadosos penteados que denotavam estado civil e pertença a determinado grupo, os panos da Costa, o porte de amuletos, jóias ou chinelas. O abadá, espécie de túnica branca, por exemplo, identificava um malê. O uso do camate, gorro circular, sinalizava o adepto de rituais bantus para ancestrais, realizados na mata, a cabula. O fez apontava os islâmicos. Contas enfiadas em palhas da costa, as ilequês,  os fios de buriti com miçangas e búzios, os mocãs,  conjuntos de sete quatorze ou vinte e um fios de miçanga unidos pela mesma cor, os diloguns, tinham função social e religiosa e eram “lidas” à distância.

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As negras de ganho, com seus xales azuis, traziam sobre si objetos de cunho propiciatório, buscando proteção, lucro e  outras benesses. Esses objetos, dispostos na cintura  por argolas individuais ou tiras de couro, eram bolas de louça, figas, saquinhos de couro, dentes de animais e também medalhinhas, crucifixos e outros símbolos cristãos relidos pela funcionalidade mágica de suas formas. Seus tabuleiros também iam protegidos por figas de madeira, imagens de santo Antônio e pequenas moedas. Os vendedores de cestas se identificavam pelo calção de algodão apertado na cintura, por uma cinta de sarja de lã e uma camisa enrolada em volta do corpo. As vendedoras de angu, prato da culinária afro-brasileira, tinham que ter as vestes impecáveis. As diferentes nações de africanos e seus descendentes formavam fronteiras não visíveis aos olhos de europeus, organizando-se por meio de irmandades religiosas, pontos de encontros e sociabilidades como os cantos e, mais tarde, os zungus onde não faltavam tensões e violências entre membros de diferentes diásporas.

Toda uma sonoridade, hoje desaparecida, identificava as formas invisíveis de trabalho que enchiam as ruas. Uma música que não se sabia se celestial ou infernal,  marcava o ritmo da cidade. Por cima de tudo, o som contínuo dos sinos lembrava que cabia à Igreja, tanto quanto ao trabalho, mediar a passagem do tempo. As horas litúrgicas, distinguidas por badaladas específicas, obrigavam os moradores à vivência de certo simbolismo católico. Ás seis horas, era o Angelus. As doze, anunciava-se que o demônio andava à solta. Melhor rezar…As dezoito, eram as Ave-Marias nas esquinas, frente aos oratórios, caso se estivesse na rua. Tantos toques para um enterro, outros tantos para um nascimento, X para meninos, Y para meninas, etc. Ao peditório em altos brados dos mendigos, se juntava aquele dos irmãos de confrarias, com bandejas de esmolas e imagens de santos à mão, numa cacofonia sem fim.

Com relação ao domínio de uma profissão, valia mais aquele, escravo ou escrava, habilitado do que o trabalhador braçal, sem qualificação. E dentre os profissionais de maior valor tinham os capazes de ganhar mais com o seu trabalho – como o alfaiate, o pedreiro, a rendeira, o marceneiro e outros que geravam boa renda para seu senhor. O homem valia mais do que a mulher. Na sessão “Avisos” de jornais como a Gazeta do Rio ou A Idade d´Ouro no Brasil anunciava-se a venda de escravos “que tinham alguma cousa de sapateiro”, ou de cozinheiro entre outras habilidades.  O importante era não ter “vícios”.

Já a categoria das pessoas livres dividia-se em três grupos: os plebeus comuns – a maioria -, os plebeus dotados de algum privilégio ou título de nobreza que formavam a pequena elite colonial e o  grupo emergente de ex-escravos ou de seus filhos marcado pela origem. Nos documentos cartoriais, eclesiásticos ou de estado, o nome vinha acrescido da cor e do status jurídico da pessoa. Assim, um ex-escravo era sempre, um ex-escravo, como, por exemplo certo João, pardo forro.

Mobilidade social já havia e fora amplificada pelo aumento de atividades e serviços exigidos pela instalação da Corte. Por exemplo, as barbearias, ponto de encontro e de conversa masculina, atendiam seus clientes com profissionais que  acumulavam três funções: dentista, cirurgião e barbeiro. Tais ofícios, como o do preto forro João Santos, de nação mina, lhe permitiu, ao morrer, deixar um patrimônio em jóias, peças de ouro e prata, 11 escravos, além dos aparelhos de sua dupla profissão, dentista e barbeiro: ferros de tirar dentes, boticões, quilhas, pinças. Casado com a preta mina Gertrudes Correa, também forra, além do exercício de seu ofício, João negociava com o interior café, feijão, milho farinha e arroz. Sua barbearia era servida exclusivamente por seus escravos barbeiros. E não foi caso único.

Trabalho havia em todos os escaninhos da cidade. Da Rua D. Manuel até as encostas do outeiro dos frades bentos, onde estava sendo erguido por eles o seu mosteiro, era a Praia do Peixe, lugar de atracação das canoas de pescadores e da comercialização do fruto de seu trabalho fresco ou ali mesmo por eles salgado. Alguns pescadores eram tão bem sucedidos que emprestavam dinheiro a juros como o caso do português, José Francisco, dono de três lanchas de pescaria em alto-mar, senhor de 30 escravos.

Aí também, era grande o movimento dos trabalhadores em torno da calafetagem de barcos, obstruindo juntas e frestas com piche e alcatrão. Misturados a estes especialistas da limpeza e reparação de cascos, negros e negras caminhavam  ligeiros, cestos a cabeça e,  conta Schlchthorts, todos iam cantando, assobiando ou falando entre eles. Muitos eram repentistas, buscando os motivos de seus versos no que os cercava: “Vou carregando pros meus pecados / Mala de branco pra viajar / Quem dera ao Tonho, pobre do negro / pra sua terra poder voltar”.

Na segunda metade do século XVIII, a Praia do Peixe tomara o nome de dos Mineiros em razão do aumento do comércio com as Minas provocado pela abertura do Caminho Novo. Daí partiam mascates e cometas levando, serra acima,  azeite de peixe, sal e quinquilharias de porta em porta. Vestidos como uns frajolas, em sapatos de fivelas, e meias até o joelho, mala de madeira às costas e nelas fazendas e meias dependuradas, traziam na mão, servindo também de bengala, um metro de madeira dividido em duas partes. Antes da abertura dos portos, quase todos eram portugueses ou brasileiros, daí o povo chamá-los de caixeiros, por causa das caixas que carregavam. Depois foram chamados matracas graças ao ruído que faziam com o metro para atrair a clientela. Entre eles, alguns estrangeiros aproveitavam as oportunidades para pequenos negócios. Mais além do Valongo chegava-se ao Morro da Conceição, onde se instalara o trapiche de São Francisco. Era um dos muitos galpões ou armazéns onde eram depositados, sob controle do Estado, as caixas de açúcar vindas de campos ou de Santos.

Também ali perto, num terreno cedido pelos beneditinos, a Coroa tentava melhorar as condições de sua Marinha. O cenário era o Arsenal. Na parte de baixa, uma chusma de gente arrumava e organizava a munição. Na parte superior, funcionários graduados, inclusive oficiais em uniforme – Lord Cochrane entre eles – trabalhavam intensamente. Uma parte dos operários era constituída por criminosos, branco e negros, algemados por pesados ferros. Outra, por meninos de rua ou enjeitados que, entregues ao serviço do Estado, trabalhavam desde cedo no aprendizado da arte de marinharia.

Junto ao Arsenal – é sempre E. Abel quem conta – estava o principal logradouro para a locação de transportes por água que eram de dois tipos: botes a dois e quatro remadores, providos de toldos de lona, e canoas, do formato de cochos, tripuladas por dois negros. Baratas, elas iam a toda a parte, inclusive oferecendo produtos alimentícios e água às grandes embarcações que aportavam na baía. Dentro delas, tais trabalhadores identificavam marinheiros, grumetes, contramestres e pilotos, europeus e africanos, livres ou escravos, com quem trocavam informações, recados e, sobretudo, mercadorias. As relações comerciais diretas entre o Rio de Janeiro e Angola facilitavam o contrabando, aproximava pessoas e produtos e como já se sabe, abria brechas no monopólio metropolitano, que, hoje, sabemos, nunca foi tão rígido.

Ao longo da praia, um mercado informal oferecia de feijão, tremoços, bananas, à lenha e comida pronta. Era  muito comum comer fora de hora os quitutes – palavra banto – e receitas caseiras oferecidos por vendedoras. O prato mais solicitado era a carne-seca preparada com feijão e farinha em braseiros a céu aberto; ou o Fúnji, de origem angolana, cozido de peixe, temperado com óleo de palma acompanhado de farinha de mandioca escaldada com o próprio caldo. No entender de Luís da Câmara Cascudo, pelo seu poder de saciedade o Fúnji era o pão dos pobres.

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Impressionava o número de lojas de virtualhas ou vendas – dizem Leithold e Rango. “Não há uma rua ou travessa que não tenha sua venda a uma pequena distância uma das outras (…) o mau cheiro que exalam estas vendas, sempre repleta de escravos bêbados é insuportável. Nelas se pode comprar carne de porco, banha, velas, cerveja, azeite, vinagre e outros mantimentos. (…) Há também mercados onde se compravam toda a sorte de gêneros. Especialmente interessantes são os de animais e frutas”. Os escravos que trabalhavam em tais mercados, aproveitavam as horas livres para fiar algodão ou fazer chapéus de palha, forma de aumentar seu ganho. 

Horrível e pouco civilizado se considerava o costume do país – segundo Lindley – de comer com as mãos, em vez de usar garfos e facas, posto que não houvesse falta destes utensílios. “Primeiro tomam entre os dedos um pouco de carne e depois legume e farinha. Mergulham isto no molho ou na sopa, esmagam o conjunto na palma da mão,fazendo um bolo mais ou menos do tamanho de um pequeno sabonete, o qual assim pronto levam imediatamente à boca, preparando outro enquanto comem”. Depois da chegada da Corte, baixelas e talheres fizeram sua entrada nos lares mais burgueses, seguidos de vários artigos de cutelaria importados da Inglaterra: facas de cozinha e açougue, navalhas finas para fazer a barba “à gentleman”, tesouras para costura e jardim ou lancetas de cirurgião.

No velho mercado ou nas suas quitandas – outra palavra banto – acotovelavam-se ervanários,  – onde pontificavam curandeiros que comerciavam ervas medicinais – com “ferros velhos”, onde se comprava e vendia toda a espécie de objetos usados, fossem camas ou roupas, panelas ou gargalheiras para escravos fujões. Em trajes típicos, as pretas-minas vendiam patuás, bonecas de pano e misteriosos filtros.

Os prussianos mencionam também as lojas onde se ofereciam gravuras emolduradas, artigos reunidos em série, quinquilharias francesas e brinquedos. Também meias brancas de seda, meias pretas, lenços para rapé, lenços rendados, chalés, fitas, peças de crepe de todas as cores, panos de seda, levantinas e linhos.

Na rua dos Ourives se vendia todo o tipo bijuteria além da prataria de uso doméstico: bules, bandejas entre outras alfaias. As pedras preciosas – topázios, ametistas, esmeraldas e brilhantes, atraíam os estrangeiros. Mestres portugueses e africanos conhecedores de todo o tipo de técnica se revezavam para atender sua clientela. Os segundos não hesitavam em burlar as Leis Suntuárias que negavam às mulheres de cor o direito de vestir-se ou se enfeitar como as brancas, preparando-lhes as pencas de balangandã para usar com o chamado traje de beca. Tendo em média de vinte a cinqüenta objetos, as pencas eram exibidas em dias de procissão e festas de Irmandades negras e mulatas. Tais ourives também faziam para as mulheres de cor, correntões de ouro, copos ou punhos filigranados e brincos de contas de coral e das cores dos deuses homenageados. As aquarelas de Carlos Julião, por exemplo, retratam imagens de negras ganhadeiras portando sua joalheria ritual religiosa.

Produtos importados ganhavam as prateleiras. Em 1817, o negociante francês Carlos Durand, por exemplo, fazia saber a seus clientes que chegaram novidades: cheiros, água de Cologne, diversas essências e vinagres para toucador e para mesa, luvas, suspensórios, sabão, leques de toda a sorte, escovas e pentes de todas as qualidades, sapatos e chinelas para homens e senhoras, de seda e marroquim, botas de Paris, caixas de tabaco, caixas de costura para senhoras, velas e azeite clarificado para lustres, chapéus de palha e castor para homens e meninos, chapéus de palha para senhoras, chapéus de seda, penachos, fitas, filós, flores artificiais, mesas e espelhos de toucador, espelhos de todos os tipos com e sem moldura, bijuteria falsa e verdadeira, pêndulos, relógios de repetição, sortimento de livros franceses.

Palavras estrangeiras ganhavam espaço no diálogo do dia a dia. Não foram só as elites que se aburguesaram – como sugere Jurandir Malherba – mas também escravos e forros. E isto pelo contato com a modificação nos hábitos cotidianos, pois, ainda que pelo trabalho, tais trabalhadores serviam de cadeia de transmissão de novos usos e costumes. “Ir muito inglês” ou ser “jarreta” eram alcunhas recentes que expressavam novas formas importadas de usar a indumentária. Os cariocas se adaptavam a um novo mercado de consumo, e a produtos que modificavam suas formas de agir, de representar-se, e de se exprimir.

Nas chamadas “casas de pasto” e cafés, o movimento também era intenso: empregados circulavam servindo limonadas, vinho verde português misturado à água, vinhos tintos franceses, claretes ingleses, Portos portugueses, cervejas suecas, a porter, segundo o prussiano Leithold, afogando, docemente, o hábito do consumo de licor de caju e cachaça. Também na rua do Ouvidor, se reuniam  advogados e meirinhos para tratar de seus negócios ou segundo Lucock tratar de como esvaziar o bolso de seus clientes. Apresentavam-se vestidos com velhas casacas pretas, fivelas enormes nos sapatos, perucas empoadas e chapéus sebentos, numa prova de que a moda europeia não aburguesava a todos da mesma maneira.

No Campo de Santana, posteriormente da Aclamação, reinavam as lavadeiras. No centro, um vistoso chafariz de pedra reunia as mulheres, algumas delas alugadas à casa de famílias, que esfregavam e batiam roupa em meio ao falatório e a cantoria. Algumas levavam amarrados às costas, por meio de panos coloridos, as crias pequeninas. Crianças miúdas aguardavam o trabalho de suas mães, quando não as ajudavam a quarar a roupa. Muito perto, se instalaram os cigano que comerciavam com cobre, ofereciam trabalhos de calderaria, vendiam e compravam cavalos velhos e roubados, enquanto suas mulheres liam a boa-sorte ou benziam doentes. Não muito longe, também, no Largo do Rossio, por trás de venezianas cerradas, pois a polícia assim o exigia, mulheres sussurravam convites lascivos aos homens que passavam pela calçada. A noite, o movimento aumentava. Afinal, o Rio era um porto.

O transporte era feito em seges e fiacres de aluguel, outra forma de trabalho cotidiano. Alugados por encomenda de meio dia ou dia inteiro, os seges eram carros de duas rodas, pequenos, semi-cobertos e forrados de couro verde ou vermelho, onde mal cabiam duas pessoas. Cortinas de couro protegiam a frente do veículo em caso de chuva e de cada lado, havia uma pequena janela de correr para deixar passar o vento. Mulas magras puxavam o carrinho que Leithold, sempre menosprezando, compara aos que se atrelavam aos macacos ou cães nas feiras europeias para diversão da criançada. Havia seges maiores para seis pessoas, cobertos e puxados por seis mulas. Era comum encontrar cocheiros negros que, nos seus momentos de lazer, sentados nos bancos das carruagens que conduziam, aproveitassem para tocar viola. Não era incomum, tampouco, que tais seges servissem para encontros de amantes, atuando o cocheiro como alcoviteiro ou moleque de recados de relações proibidas.

Outra forma de transporte que implicava em trabalho era a que congregava carregadores de serpentinas, de palanquins indianos com cortinas, ou as cadeiras sobre estrados: os chamados serpentineiros, cadeireiros ou litereiros, então, conhecidos como “anda”. Definidos pelo aparato de sua indumentária, mostravam a grandeza ou a decadência da casa a que serviam: fardas da melhor qualidade, perucas vindas de França, luvas brancas. Gemidos compassados indicavam que alguém tinha pressa. Outro tipo de serviço era prestado pelos carregadores de doentes: dois homens transportavam o achacado  numa rede presa a um pau roliço, fechada em cima para preservar sua privacidade. Em geral, conta Leithold, o doente era acompanhado por curiosos e desconhecidos que o incentivavam a resistir à doença, com rogatórios e exclamações de saúde!

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Aos muares vindos de São Paulo e Rio Grande do Sul, e que eram responsáveis por um ativo mercado de negócios, cabia a circulação de gente e de mercadoria na cidade.  Cavalos eram alugados por meio dia ou dia inteiro. Eram caros, bons e vinham do interior de Minas Gerais. Apesar do custo de manutenção, todos tinham o seu cavalo, conta-nos Leithold,. Os alfaiates, por exemplo, vinham visitar os seus fregueses  a trote, trazendo na garupa um ajudante de cerca de dez ou doze anos, com o material de trabalho à cabeça. A abertura dos portos incrementou os artigos de selaria. Foi o início do fim dos palanquins orientais substituídos pela importação de selas “regala-bunda” conta-nos Gilberto Freyre, vendidas em lojas francesas como a de Affonse Saint-Martin, bem como da multiplicação das vendas de tilburys e victórias ingleses, forma democrática de transporte. Carrinhos ingleses, ferradores ingleses, arreios ingleses enchiam as páginas de anúncios de jornais.

Também nos jornais, professores de todo o tipo ofereciam seus serviços: de professores régios que ensinavam “as primeiras letras, a contar e o catecismo” em suas próprias residências a estrangeiros, em sua maior parte, recém-chegados, que ensinavam a dançar, a tocar piano, a falar inglês ou francês, a recitar poesias. Entre eles, muitas mulheres. Estrangeiros também se ofereciam no jornal a Gazeta do Rio de Janeiro, como pintores de paredes, forradores de parede com tecidos ou papel estrangeiro, ladrilhadores, cabeleireiros com seus pós mágicos para tingir ou fazer crescer cabelos, perfumistas, comprovando, assim, a diversidade do consumo e do mercado de trabalho.

Segundo Luccock, o afluxo de estrangeiros e a multiplicação de necessidades elevaram o valor do trabalho de forma extravagante. “Deu isto motivo para que surgisse uma nova classe social, composta de pessoas – livres ou forros – que compravam escravos a fim de instruí-los nalguma arte útil ou ofício, vendendo-os  em seguida por um preço elevado, ou alugando seus talentos e seu trabalho”. Nas festas religiosas como Corpus Christie, nas procissões da Semana Santa ou nos natalícios e casamentos monárquicos, ferreiros, padeiros, tanoeiros, alfaiates, pescadores e arraes, taverneiros e mercadores, sirgueiros, ponteiros, luveiros, latoeiros, fundidores, carpinteiros, tintureiros, estereiros, picheleiros, entalhadores, entre outros eram convidados a participar com suas insígnias, com suas bandeiras de São Jorge, São Miguel, São José e outras devoções. As doações que faziam para a arte efêmera de arcos e colunas que enfeitavam a cidade, eram um termômetro preciso para avaliar o crescimento e, mais do que isto, o fortalecimento dos ofícios mecânicos.

A vinda da Corte acelerou os batimentos cardíacos da cidade. A oferta de produtos, a circulação de pessoas, a multiplicação das artes e ofícios fizeram explodir as fronteiras entre espaços geográficos, mas, também, entre as fronteiras lingüísticas e as legais que a princípio separavam as comunidades. Longe da Corte amorfa que, segundo os livros de história, só a partir de 1850 e 60 apresentaria mudanças significativas, o que se depreende das fontes é o cotidiano de uma cidade portuária viva, habitada por atores que fariam jus à opinião do marques de Alorna: eram eles os moradores de um ponto de encontro entre as quatro partes do mundo, – aqui se encontravam europeus, africanos, asiáticos e brasileiros, – habitantes de um  espaço onde a mobilidade era mais importante do que a origem geográfica, eram, enfim, atores de uma precoce globalização – conceito utilizado por Serge Gruzinski.

Ares cosmopolitas misturavam viajantes, expatriados, imigrantes e migrantes. Havia os franceses fugidos dos desastres de Napoleão, denominado pela imprensa de “usupador do Continente”. A queda de Napoleão e a entrada dos exércitos de Talleyrand na capital apavoraram vários bonapartistas, razão da rápida organização da Missão Francesa, por exemplo. Nicolas Antoine Taunay, pintor de paisagens, encaminhou, então, um pedido formal de emprego ao príncipe regente de Portugal.  Quando a pequena colônia pôs-se em movimento, reunia vários nomes.Uma das figuras mais interessantes destes bonapartistas fugidos a integrar a constelação de estrangeiros no Brasil foi a do general holandês, conde von Hagendorp que teria conspirado do Brasil para a fuga de Napoleão do exílio na ilha de Santa Helena.

Somavam-se a estes recém-chegados, os comerciantes ingleses beneficiados pelo tratado de 1810, tratado que privilegiava os produtos ingleses com tarifas menores e consolidou a preeminência inglesa no Brasil. Cientistas, naturalistas e botânicos comprovam o interesse que o futuro Império despertava. Dentre outros europeus de renome que por aqui se instalaram durante alguns anos, houve os botânicos Karl  Martius – o Von de nobreza só chega mais tarde – e Johann Baptist Von Spix, este responsável pela primeira interpretação de um Brasil como matriz da mestiçagem entre raças. O dinamarques Peter Wilhelm Lund desembarcado, em 1825, em busca de bons ares para seus pulmões, acabou por fundar a paleontologia no Brasil.

Aproveitando que o tratado de 1810 estabelecia que súditos de sua Majestade britânica não seriam molestados por sua religião e, mais tarde, que a Constituição de 1824 estabelecia a liberdade religiosa no país,  – os não católicos podendo praticar seus rituais em cultos domésticos -, judeus ingleses e franceses se estabelecem na Corte. Foi, por exemplo, o caso de Bernard Wallenstein, comerciante de artigos femininos conhecido como o “Carlos Magno da rua do Ouvidor”, assim como de sefaraditas descendentes das comunidades ibero-judaicas expulsas da Península.

Do Oriente, melhor, do Império do Meio vieram os “chins” para o cultivo do chá e da seda. Dois ou três milheiros se juntaram na Corte aos trezentos importados de Macau, pessoalmente, pelo conde de Linhares. O Beco dos Ferreiros era o bairro chinês da cidade. Nos vetustos sobrados comprimia-se a densa colônia. A 10 de setembro de 1814, por exemplo, o Registro de estrangeiros indicava a chegada de Liang Chou, Ming Huang, Chian Chou e Tsai Huang em missão recepcionada pelo Conde da Barca. Anúncios de jornais atestam a riqueza do comércio formal ou informal – graças aos navios que faziam aguada ou reparos na baía – com esta região: cera amarela, pentes para piolho de tartaruga e marfim, cangas de cantão, mão de coçar as costas, leques, charão, chá. O vocabulário ganhava com a incorporação de palavras como Kaki e Kiosque.

No privado ou no público, o cotidiano mudou depois da chegada da família real ao Brasil. A cidade ficou mais cosmopolita, o número de seus habitantes cresceu, as formas de trabalho se sofisticaram, os encontros culturais se multiplicaram, os grupos de estrangeiros mesclaram-se aos naturais, a língua falada e escrita ganhou palavras novas, enfim, o dia a dia se modificou. Tornou-se o ponto de encontro entre arcaísmo, tradição e regularidade e ruptura, aburguesamento e modernidade.

 Texto de Mary del Priore.

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D. João e D. Carlota no Rio de Janeiro, de Nicolas-Antoine Taunay.

 

 

 

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  1. celina

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